A FUNÇÃO SOCIAL TRAVA A ECONOMIA

. A função social ataca de novo      
O Brasil tem a mais alta taxa de juros do mundo, mas é possível comprar automóveis a juro zero. Não é toda hora, mas é com freqüência que montadoras, revendedoras, bancos e financeiras lançam esse tipo de promoção. Mesmo fora de promoções, os juros para compra de carros são os mais baixos do mercado e equivalentes aos padrões internacionais. E isso sem subsídio do governo e sem programas públicos de incentivo.     
O segredo está na cara: é a facilidade de execução da garantia. Não pagou, perde o carro, e isso não demora muito ? para os padrões brasileiros, é claro.     
No crédito pessoal, os juros ficam na faixa de 5% ao mês, exceto no cheque especial e no cartão, casos de agiotagem.     
Mas no crédito consignado ? com desconto em folha de pagamentos, para trabalhadores com carteira assinada, ou na folha do INSS, para aposentados ? a taxa pode cair a 2%.     
De novo, o segredo está na cara: a garantia de pagamento é sólida, o risco é baixo.     
E como os dois tipos de negócios são bons para os bancos, abre-se uma feroz competição entre eles, o que força as taxas mais para baixo.     
Dados esses exemplos, não parece óbvio que o caminho para reduzir os juros em geral é reforçar as garantias e a execução das garantias no sistema de crédito em geral?     
Por exemplo: empresários do setor imobiliário, atuando com o Ministério da Fazenda, estão fazendo um amplo esforço para conseguir que os bancos privados voltem pesadamente ao negócio de financiar a casa própria e que os compradores percam o medo de tomar empréstimo bancário.     
O medo vem da década de 90, quando um sem número de mutuários se encontrou naquela situação de pagar o valor de duas casas e continuar devendo. Hoje, isso já não ocorre e os juros, subsidiados, são razoáveis, mas o medo, de parte a parte, ainda não passou.     
Está passando aos poucos. Os bancos têm mais dinheiro para emprestar (por causa de mudanças legais aplicadas pela Fazenda e pelo Banco Central) , o volume mensal de financiamentos novos tem aumentando, as entidades do setor imobiliário estão preparando campanhas de esclarecimento, alguns bancos entram mais fortemente e assim vai.     
Essa, aliás, é uma das boas notícias para a economia ? a volta, ainda que paulatina, desse negócio, a construção civil, que é essencial para o crescimento.     
De todo modo, tem subsídio, o dinheiro vem de fundos públicos ou da poupança, que remunera muito mal o investidor, e tudo passa pelo governo, que financia diretamente e/ou dá as regras para os empréstimos privados. Em resumo, é sempre enrolado.     
Por que não se tenta copiar o regime dos automóveis?     
A idéia seria liberalizar todo o mercado, eliminando-se regras e regulamentações do governo ? tais como aquelas que estabelecem limites para o financiamento, determinam quanto do imóvel pode ser financiado e quanto da sua renda o comprador pode comprometer. Todo esse sistema parte da  suposição de que as pessoas não sabem cuidar de seus negócios e de suas vidas. Parece que os bancos não sabem emprestar, que as empresas imobiliárias não sabem construir, nem vender e que o comprador é um bobalhão que não sabe quanto pode gastar. Aí vem o governo, que sabe tudo, e regulamenta tudo. A história do Brasil mostra que não funciona. Assim, a sugestão é fazer o contrário: uma reforma liberal ? ou neoliberal, tudo bem. Ficam as regras de prudência e equilíbrio para os bancos, todo o resto vai por conta das pessoas no mercado livre. O banco decidiria se o cliente tem ou não crédito, o comprador decidiria qual risco tomar. Uma família pode se organizar e comprometer 50% de sua renda por um período de sacrifício. Outros possíveis compradores não são confiáveis nem comprometendo apenas 5% de sua renda. Mas há uma condição básica para que o mercado livre assim funcione, a execução da garantia. A garantia é a casa, não pagou a prestação, perde a casa em processo sumário. Como nos Estados Unidos, onde o financiamento imobiliário é o mais barato do mundo e onde a construção civil sustenta boa parte da atividade econômica. Pode apostar que também aqui ia sobrar financiamento e que os bancos entrariam em forte competição, com a conseqüente derrubada dos juros. Até que a justiça determinasse que a pessoa humana tem direito à moradia e não pode ser retirada de sua casa, mesmo que não pague a prestação. A propriedade da casa tem função social, como diz a legislação brasileira e a cultura dominante nos tribunais. É curiosa essa teoria. Em nome de um direito supostamente universal ? o direito à moradia ? termina-se protegendo uma minoria de pessoas, os que não pagam em dia, barrando o acesso à moradia para a ampla maioria, pois os juros sobem e o financiamento escasseia para todos. Aliás, o crédito consignado está sob essa mesma ameaça. Já há ações correndo nos tribunais sustentando a tese de que não pode haver confisco de salário, e que o desconto direto em folha seria um tipo de confisco. Se essa tese vingar, os juros dessa modalidade voltarão aos 5% de praxe ? e de novo se estará protegendo uma minoria contra a ampla maioria. A idéia da função social ? da lei, do contrato, da propriedade ? é hoje uma das principais travas da economia brasileira. Cria insegurança jurídica ? pois os juízes mudam os contratos com base em interpretações subjetivas ? e impede que as pessoas e empresas usem livremente seu capital e sua propriedade. Por trás de tudo, a idéia de que as pessoas, deixadas livres, farão bobagens e serão enganadas pelos espertos capitalistas. Sim, sabemos que há imperfeições no mercado. Mas são imperfeições, como os monopólios naturais de alguns setores, que atrapalham o funcionamento do livre mercado. Ou seja, as regras são necessárias para permitir o funcionamento do mercado. A idéia da função social parte do suposto que imperfeito é o mercado e trata de substituí-lo por normas que supostamente protegem as pessoas. E terminam por travar a economia, elevar os juros, reduzir os financiamentos e impedir o principal direito que é de cuidar de sua própria vida livremente. Publicado em O Estado de S.Paulo, 23 de maio de 2005

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