. Das proteínas ao shopping Já conhecemos o genoma humano. Mas como se passa disso ao pensamento e às decisões?     Então é isso que somos, os seres humanos: uma combinação de proteínas. Uma combinação muito complexa, deve-se acrescentar – e foi isso que nos aliviou do pesado choque provocado pela divulgação do genoma humano, o nosso código genético. Feitas as contas, verificou-se que cada um de nós tem apenas 30 mil genes – a mesma quantidade que se encontra no milho, só o dobro da mosca das frutas e reles um terço a mais do que no verme. É verdade que muitos seres humanos não passam de vermes, mas isso no sentido moral, área que não vale para os cientistas. Os biólogos e químicos não gostam nem de dizer que o ser humano é superior aos demais seres vivos, plantas e animais. O humano é complexo, é o máximo que admitem. Mas complexo como, se nosso aparelho genético é um terço do que se supunha? É preciso procurar nas combinações entre as proteínas, informa a ciência. Imaginava-se que a história seria mais simples: um gene produz uma proteína que exerce uma função no organismo e, por exemplo, causa determinada doença. Ou torna a pessoa capaz de marcar gols geniais, pintar uma Guernica ou compor a Ressurreição. Seria um reducionismo muito útil: gene-proteína-função. Haveria um caminho direto para se encontrar o ponto de partida de uma doença e, logo, curá-la. Ou, então, interferir nos genes de modo a produzir seres próximos a Pelé, Picasso ou Mahler. Mas para que fosse direto assim, seria necessário que tivéssemos algo como 100 mil genes, de modo a dar conta da quantidade de coisas que um ser humano é e foi capaz de fazer ao longo da evolução. Sendo apenas 30 mil genes, ou o ser humano é como o milho ou a explicação está nas proteínas. Eis aí, os genes humanos produzem mais proteínas dos que os outros. São vários tipos de proteína que combinam entre si e aí se faz o humano. Ficou mais difícil mas – quer saber? – também mais adequado à complexidade humana. Saímos do reducionismo vulgar para o campo das relações complexas, as múltiplas combinações. Como disse o cientista Craig Venter, criador da Celera Genomics, a empresa privada que escreveu o genoma e um programa (um soft) para se localizar os genes: “Sabemos agora que a idéia de que um gene leva a uma proteína e a uma doença é falsa. Agora sabemos que o meio ambiente, agindo em etapas biológicas, pode ser tão importante quanto o código genético”. Assim, na biologia e na química, o caminho da pesquisa é o seguinte: escrito o código genético, o genoma humano, trata-se agora de fazer o sequenciamento das proteínas (sua estrutura, suas combinações). Nesse caminho, a biologia e a química entenderão as diversas funções do organismo humano, identificarão doenças e produzirão os remédios. Isso, aliás, já está acontecendo. Mas certamente teremos de esperar mais um tempo para entender o que, no fundo, nos interessa: como de uma mistura de proteínas e mais alguns impulsos elétricos se passa a uma idéia, uma inspiração, uma paixão, uma decisão. Ou seja, Alan Greenspan, o presidente do banco central dos Estados Unidos e, pois, do mundo, vai continuar sem o instrumento que lhe falta para decifrar de vez os rumos da economia. Sabemos muita coisa, disse ele na semana passada, mas não entendemos a natureza humana. Na verdade, ele se referia a um aspecto dessa natureza: como as pessoas tomam ou adiam a decisão de comprar um carro novo ou construir uma casa.    A ciência econômica evoluiu muito nas últimas décadas e isso devido ao uso cada vez mais intenso da matemática. Olha aí, a mesma matemática – com os mesmos computadores – que permitiram aos químicos e biólogos calcular e ordenar os 3,1 bilhões de pares de bases nitrogenadas que são a estrutura dos 30 mil genes. Portanto, jovens, admitam: não há vida fora da matemática. Na teoria econômica, dizíamos, chegou-se inclusive a construir índices que medem o grau de confiança e a expectativa dos consumidores. Começa-se com um questionário. Por exemplo: de zero a dez, quanto a pessoa dá para sua situação econômica pessoal hoje? Que nota dava há seis meses e quanto espera ter daqui a seis meses? E como avalia a situação do país? Está comprando mais ou menos do que no ano passado? Vai comprar mais ou menos? Como avalia seu emprego? Tem medo de perdê-lo, muito, pouco ou nenhum? Por aí vai. Tabulação, estatística, ponderação e, pronto, pode-se dizer: o grau de confiança do consumidor, numa escala de zero a cem, está em 80 pontos, otimista, portanto. É uma informação crucial: se as pessoas estão animadas, elas vão comprar mais. Portanto, vale a pena produzir mais automóveis e geladeiras, para o que é preciso buscar capital. A engrenagem da economia está girando. Podem-se estabelecer algumas relações. Por exemplo, colocam-se no mesmo gráfico os índices de desemprego e de confiança do consumidor. Em geral, a relação é firme: sobe o desemprego, cai a confiança. (No caso do Brasil, tem sido muito estreita a relação entre inflação e popularidade do presidente FHC. Uma sobe, a outra cai). Mas quando parece tudo arrumadinho, os gráficos desmoronam. O desemprego é baixo, a inflação está no chão, a renda familiar aumentou, o mundo está em paz e, de repente, o consumidor resolve ficar mais um tempo com o carro velho, desiste de comprar a casa na praia. Sem mais nem menos, o índice de confiança despenca. Ora, com esse tipo de comportamento tão anticientífico, como Greenspan ou o nosso Armínio Fraga podem saber se é para reduzir ou aumentar os juros? Daí a expectativa em torno do genoma. Se houvesse um gene das decisões econômicas ou, melhor ainda, um gene da compra, outro da venda, outro ainda da poupança … Já sabemos que não há. Mas seria vã a esperança de que uma determinada combinação de proteínas levasse às funções econômicas? Já não há menor dúvida de que há proteínas por trás do pensamento, dos sentimentos, da ação humana. Mas como se passa delas para o abstrato? Eis o que nos distingue dos vermes: nós sabemos, se não as respostas, pelo menos as perguntas. Pior para nós, dirá alguém angustiado com o gênero humano. Um dia chegaremos lá, dirá um iluminista. Mas não tentem medir isso. Deixemos que tais sentimentos ao menos gerem algumas obras de arte. Ou um gol de placa. Publicado em O Estado de S.Paulo, 19/02/2001