O CHOQUE DO BANCO CENTRAL

. Não é moleza O ambiente estava assim: o Banco Central vai reduzir os juros, o consumidor voltará às compras, as empresas venderão mais, o governo arrecadará mais impostos e aumentará seus gastos. Espetáculo do crescimento. Aí vem o BC e diz que não vai ser essa moleza, que vai segurar os juros porque tem uma inflação para controlar e que esse jogo está longe de ter sido ganho. Eis aí, além do susto e do mau humor, um episódio para diversas interpretações. Para quem achava que o BC tinha assumido a função de atender a demanda do governo Lula por crescimento já, pode esquecer. O BC andou na maior contra-mão – e pelo lado da maldade. Sim, porque quando todo mundo espera alguma maldade e o BC entrega um doce, aí é fácil estar na contra-mão. Mas quando todo mundo aposta alegremente na redução dos juros, no governo e fora dele, então é preciso um BC com muita convicção e autoridade para negar o doce. Pode-se concluir, portanto: o BC da era Lula continua como o BC da era FHC. Tem autonomia de fato. Por isso, talvez, passou sem repercussões no mercado a declaração do presidente Lula segundo a qual a autonomia do BC é apenas uma “inquietação acadêmica”. E disse isso na quinta passada, quando o mercado desabava depois ter lido na ata do Comitê de Política Monetária, Copom, que a inflação atual está perigosamente alta e requer combate duro, isto é, juros altos pelo menos por enquanto. Ora, se Lula perguntar ao presidente do BC, Henrique Meirelles, que é banqueiro e não acadêmico, ouvirá como resposta que a autonomia do BC, se formalizada em lei, derrubará o risco Brasil em vários pontos. E isso permitirá reduzir juros aqui dentro e lá fora, nos financiamentos a empresas brasileiras. É claro que já disseram isso a Lula diversas vezes. Também é verdade que já disseram o contrário, sendo possível que o presidente esteja indeciso. Nessa circunstância, a frase sobre a “inquietação acadêmica” poderia ter sido interpretada como uma crítica e uma ameaça a um BC que age na prática com autonomia. Mas como Lula acrescentou, no mesmo comentário, que o BC do seu governo “leva em conta a necessidade de defender a moeda brasileira” e que “não faz aventuras”, ficou uma pela outra. Assim, a menos que o presidente esteja preparando alguma grande surpresa, como uma troca na diretoria do BC, aí sim um terremoto, ficaram dois recados. Um à esquerda – para o pessoal que está uma fera com a não redução dos juros – dizendo que a discussão da autonomia do BC no Congresso é para depois. Outro recado à direita – para o pessoal da austeridade econômica – dizendo que não se inquietem com a falta de lei porque na prática o BC continua autônomo. Sem novidades. É o jeitão de um governo que precisa se equilibrar à esquerda e à direita. Algumas coisas têm funcionado assim, outras não. Mas esse episódio em torno do BC deixou uma lição importante para o próprio governo. Não é fácil construir as bases de um crescimento sustentado. Precisa de muito mais além de juros baixos e gasto público. Isto é um aprendizado para o PT, em cujas raízes mais profundas encontra-se um firme viés estatizante. Não se trata, é claro, de estatizar tudo e socializar os meios de produção. Isso só não é uma bobagem para meia dúzia de petistas que ou já estão fora do partido ou logo estarão. Mas os outros, mesmo achando que é preciso conviver com a economia de mercado, continuam acreditando que o governo manda na economia, faz e desfaz crescimento. Desconfiam dos investidores e empresários, querem que tudo seja controlado – de preços a investimentos – e acreditam piamente que só o gasto público faz justiça social. Nessa perspectiva, o ambiente econômico parecia andar muito bem: o BC, finalmente enquadrado, cumpria sua função de reduzir os juros e o governo se preparava para gastar. O primeiro choque contra essa visão simplista já foi dado. Independente da discussão técnica em torno da interpretação do BC de que a inflação é perigosa e da consequente decisão de manter os juros em 16,5% ao ano, o recado ficou: não contem com o BC para fazer crescimento a qualquer preço ou por vontade política . O segundo choque está em curso. Depois da emergência do ano passado, quando o orçamento aprovado pelo Congresso sofreu um corte de quase R$ 15 bilhões, os líderes petistas no governo, no Congresso e na sociedade estão dizendo que o primeiro orçamento da era Lula é realista e será cumprido. Novos ministros dizem, por exemplo, que não vão pressionar a Fazenda por mais recursos, mas apenas cumprir o orçamento votado pelo Congresso. Ora, só esse cumprimento aumentaria enormemente o gasto público, mais do que triplicaria os investimentos. Acrescentem-se aí outros gastos, como o decorrente de um aumento substancial do salário mínimo, não previsto no orçamento, e aqueles referentes ao Estatuto do Idoso, também não previstos, e a conta não fecha. Se for para manter o equilíbrio das contas públicas e cumprir o superávit primário, o orçamento terá de ser cortado e não será corte de dinheiro miúdo. Muitos projetos terão de ser esquecidos ou adiados ou reduzidos. Esse debate está em curso no governo. O ministro Antonio Palocci, é claro, trata de mostrar que as receitas estão superestimadas e os gastos exagerados. Antigamente falava-se em “contingenciar” o orçamento, isto é, congelar parte das verbas. Como o pessoal do PT tem dito que a era do contingenciamento acabou, Palocci tem falado em “programação financeira”. Vai dar no mesmo, no corte (congelamento, eliminação, adiamento, como queiram) de boa parte das receitas e, pois, de redução de despesas e investimentos. É o segundo choque. Assim como os juros não cairão tão rapidamente, os gastos públicos não aumentarão como o desejado. O país não vai desabar por causa disso. Continuam de pé os prognósticos de crescimento de 3,5% neste ano, com inflação de 6%, o que estará mais do que razoável dadas as circunstâncias. Enquanto isso, o PT vai aprendendo que para crescer mais, de modo duradouro, o país precisa é do mercado, do investimento privado. A agenda, portanto, não é revolucionária, não é mudar tudo que está aí. É simplesmente melhorar o ambiente de negócios para os empresários. Essa é a função – trabalho miudinho – do governo e do Congresso. Chato, não? Mas é a vida. Publicado em O Estado de S.Paulo, 02/02/2004

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