O BURACO DAS CONTAS PÚBLICAS

. E a vulnerabilidade interna?   O que há de comum entre as propostas econômicas de Luís Inácio Lula da Silva, José Serra, Anthony Garotinho e Ciro Gomes? Todas apontam a “vulnerabilidade externa” como o principal obstáculo ao crescimento sustentável e comprometem-se com uma política de apoio às exportações para sanar a dificuldade. Não é por acaso. O objetivo de aumentar as exportações é uma unanimidade no Brasil, nos Estados Unidos, na China ou na Argentina. Dólares obtidos no comércio estão entre os chamados “dólares bons”. Pode-se discordar sobre os meios, mas o objetivo de aumentar as vendas externas será sempre um bom tema eleitoral, tanto para governistas quanto para oposicionistas. Já não é o caso da outra vulnerabilidade que ameaça a economia brasileira, a das contas públicas. Também há unanimidades aqui. Por exemplo: os brasileiros pagam muitos impostos; ou o sistema tributário onera a produção e o consumo de modo exagerado e injusto. Segue-se, pela lógica, a proposta de reforma tributária, mas aqui a coisa começa a encrencar. Não apenas se trata de um projeto politicamente difícil – pois sempre será preciso arbitrar quem paga mais, quem paga menos – como também remete a outro grande obstáculo. Reduzir impostos é necessariamente igual a reduzir gastos públicos – e quem quer falar disso na temporada de caça aos votos? Eis um problema, portanto. Convém esmiuçá-lo. Dados preliminares indicam que a carga tributária no Brasil deve ter alcançado no ano passado, algo como R$ 410 bilhões, o equivalente a 34,5% do Produto Interno Bruto. É muito sob qualquer ângulo que se observe. Comparando-se com o início do governo Fernando Henrique, trata-se de um salto de cinco pontos percentuais do PIB. Comparando-se com outros países emergentes é ainda pior. Nestes, a carga tributária alcança no máximo 25% do PIB, de modo que só por aí produzir no Brasil já está mais caro, por mais eficiente que seja a empresa local. Também é consensual que o sistema é ruim, com impostos em cascata e muitos quebra-galhos provisórios que vão ficando ao longo dos anos. Como o país chegou a isso? Falta de vontade política para fazer a reforma tributária, costuma-se dizer. O que não explica nada, pois se deve perguntar em seguida: por que faltou vontade política? E aqui se pode sugerir: porque há uma forte demanda por gastos e, mais importante, porque a estrutura de gastos é rígida, com tendência constante de alta. Aos números. A tabela número 1 mostra os principais gastos do governo federal no ano passado. A receita líquida inclui a arrecadação do INSS e exclui as transferências obrigatórias a estados e municípios. Como se vê, o governo gastou 65% da receita disponível com pagamento a pessoas – gastos que não se pode atrasar e de redução quase impossível. Eis o ponto. O governo ainda não começou a funcionar, ainda não gastou nada com manutenção (não comprou merenda escolar, livros, gasolina da Polícia Federal, munição para o Exército, fita de impressora para os tribunais, passagens aéreas para os parlamentares, remédios para os hospitais ou cafezinho do pessoal), nem fez qualquer investimento em estradas, energia elétrica ou saneamento, e já gastou quase dois terços da receita. Acrescentem-se os gastos também obrigatórios com saúde (R$ 19,4 bilhões) e com o Ministério da Educação (R$ 5,5 bilhões), e se passa de 75% da receita disponível. Sobram, portanto, 25% para todos os demais ministérios, forças armadas, Legislativo e Judiciário. Na verdade, menos que isso, porque desde 1999 o governo federal vem fazendo um superávit primário (receita menos despesa excluído o gasto financeiro) justamente para pagar parte da conta de juros e controlar o crescimento da dívida, tal como estipulado no acordo com o FMI. No ano passado, esse superávit primário foi de R$ 23 bilhões, pouco mais de 10% da receita líquida. Portanto, sobraram 15% da receita líquida para todos os gastos da União, excetuados os pagamentos a pessoas, despesas com saúde e educação superávit primário. Não se pode dizer que seja um orçamento folgado, mesmo, o que é mais importante, que se elimine a necessidade de fazer o superávit primário, como se verá mais adiante. Assim, a vulnerabilidade das contas públicas vai ganhando contorno nítido. A carga tributária aumenta porque as despesas aumentam. O governo FHC tem sido acusado de impor um inédito arrocho salarial sobre o funcionalismo. Mas de 2000 para o ano passado, as despesas de pessoal (incluindo ativos e inativos) aumentaram nada menos que 15,4%. O pagamento de benefícios do INSS aumentou 14,5% e os gastos com abono salarial e seguro desemprego saltaram 20%, sempre em valores nominais. No mesmo período, a receita teve um aumento, não por acaso, na faixa dos 15%. Registre-se ainda: as despesas com pessoal, aposentadorias e benefícios aumentaram durante todos os anos do governo FHC, ainda que não tenham sido concedidos reajustes gerais. E mais: todas as despesas de custeio e capital também aumentaram (20% só no ano passado), o que torna no mínimo curiosa a classificação do governo FHC de neoliberal ou conservador. Pelos padrões clássicos, trata-se, ao contrário, de um típico governo social democrata à antiga, pré-globalização, aquele que aumenta gastos e impostos. Por outro lado, ninguém pode dizer que o serviço público federal funciona a contento. Há setores que vão bem, é verdade, mas não estaria errado dizer que faltam médicos nos hospitais, policiais nas ruas, professores nas escolas, nem que esse pessoal deveria ganhar mais. Também faltam obras e serviços, de modo que a equação torna-se absurda: o governo arrecada mais, gasta mais e continua devendo. Devendo dinheiro e bons serviços. Não falta quem coloque a culpa no acordo com o FMI, que exige o tal superávit primário. De fato, sem isso, o governo federal teria à sua disposição, no ano passado, mais R$ 23 bilhões. É dinheiro. Mas poderia assim ter evitado o aumento de impostos? Não. A despesa total do governo, excluído o superávit primário, aumentou no ano passado nada menos que R$ 28,5 bilhões. E está aumentando de novo neste ano. Ou seja, a carga tributária precisaria continuar na faixa dos 34% do PIB. Resumo da ópera: há um claro problema de contas públicas antes da despesa com juros da dívida. E a maior parte desse problema está na Previdência Social. No ano passado, o governo federal gastou pouco mais de R$ 103 bilhões com previdência, sendo R$ 75,3 bilhões no INSS e R$ 28 bilhões com os servidores inativos. (veja tabela 2). Arrecadou, como contribuição previdenciária, R$ 62,4 bilhões no INSS e pouco mais de R$ 3 bilhões dos servidores da ativa. O déficit, portanto, vai a cerca de R$ 38 bilhões, sendo dois terços por conta dos servidores federais inativos, que são apenas 1 milhão, contra 21 milhões do INSS. Além de injusto, o sistema é uma máquina de fazer déficit crescente. Acrescente aí o déficit da previdência dos governos estaduais e das prefeituras e sem tem, em tamanho família, a vulnerabilidade interna. As reformas previdenciária e administrativa votadas e implementadas no governo FHC apenas amenizaram o problema. Diminuíram a velocidade de crescimento do déficit no INSS. Praticamente nada se fez no setor público. Há projetos pendentes no Congresso Nacional, de votação praticamente impossível neste ano eleitoral. A vulnerabilidade interna, portanto, fica inteira para os próximos presidente e governadores. Seria bom que tratassem disso em vez de se esconderem na unanimidade da vulnerabilidade externa. Publicado na revista Exame, edição número 765

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