O BRASIL E A ALCA

. Precisa-se de mercados Por que o Brasil – sem perder de vista o Mercosul – deve apostar no sucesso da Alca   O risco país, tal como medido pelas agências internacionais de classificação de crédito, depende de um critério essencial, a relação entre dívida externa total e exportações anuais. O Brasil vai mal nesse quesito. No ano passado, exportou US$ 60,36 bilhões, para uma dívida total de US$ 210 bilhões. A relação, portanto, foi de 3,48, extremamente elevada em relação a países cujo risco é bem inferior. Para o México, por exemplo, a relação é de 0,83, indicando que é necessário menos de um ano para “pagar” a dívida. Isso significa que emprestar para o México é menos arriscado, de modo que os juros são menores. De fato, o risco México está abaixo dos 200 pontos base, isso significando que os seus títulos da dívida externa pagam taxas de no máximo 2 pontos percentuais acima dos papéis equivalentes do Tesouro americano. O risco Brasil, depois de sucessivas quedas, resiste no patamar dos 600 pontos, o que encarece o financiamento do governo e das empresas locais. Há outro fator que também desfavorece o Brasil, que é a relação dívida pública/Produto Interno Bruto, mas o ponto aqui é o do comércio externo. Para este ano, é possível que as exportações brasileiras, com um desempenho sensacional, cheguem a US$ 72 bilhões. A dívida deve crescer só um pouco, mas supondo que permaneça estável, aquela relação cairá para 2,91, ainda extremamente elevada. A conclusão inequívoca: o Brasil precisa de mercados. É estratégico para o país lutar pela abertura comercial em qualquer foro internacional, quer seja na Organização Mundial do Comércio, na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou em negociações com a União Européia. Preservar o Mercosul, a associação comercial com Argentina, Uruguai e Paraguai, tendo o Chile como agregado, também é prioridade, como tem insistido o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas é preciso reconhecer que o Mercosul é pequeno para as necessidades brasileiras. Neste ano, as exportações brasileiras para Argentina, principal parceiro, devem chegar a US$ 3 bilhões. Digamos que dobrem. Seria um ganho em torno de 5% na pauta total deste ano. Já os Estados Unidos importam anualmente US$ 1,4 trilhão. Considerando os demais países das Américas, sócios potenciais da Alca, se está falando de um mercado de US$ 2 trilhões, um enorme espaço. Tome-se o caso do México, antes e depois de ter formado, com Estados Unidos e Canadá, a Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, da sigla em inglês). Em 1994, o México exportou US$ 61 bilhões. Seis anos depois do Nafta, em 2000, alcançava US$ 166 bilhões, um crescimento de 2,7 vezes, equivalente ao salto de que o Brasil está precisando. A lição é clara: o acesso ao maior mercado do mundo faz toda a diferença, como sabem muito bem todos os países que cresceram e ainda crescem vendendo para os EUA, como Japão, Coréia do Sul e China. É verdade que esses três não têm acordos de livre comércio com os EUA, mas todos, por razões geopolíticas, contaram com regimes especiais de preferência. Do ponto de vista econômico, portanto, a Alca é ou deveria ser um objetivo estratégico brasileiro. Essa é a posição clara dos ministros Luis Fernando Furlan, do Desenvolvimento, e Roberto Rodrigues, da Agricultura. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, é mais cauteloso em suas declarações públicas, mas sua equipe, em conversas reservadas, não esconde que apóia a posição dos outros dois ministérios econômicos. Já o Ministério das Relações Exteriores mantém um forte viés anti-Alca. No comando no Itamaraty, comenta-se que há uma disputa entre mercado e soberania nacional. É uma nova versão da tese segundo a qual a Alca representa a “anexação” das Américas pelos Estados Unidos, conforme enunciada por Lula durante a campanha eleitoral. Ocorre que muita coisa mudou da campanha para o governo e mudou na direção da esquerda para o centro. Na verdade, no décimo mês de governo, a esquerda petista e dos partidos aliados sente-se pouco representada na administração. Não se trata da esquerda radical, da senadora Heloisa Helena e dos deputados Babá e Lúcia Genro, por exemplo, mas daquela mais moderada. Há muita gente fiel a Lula que não aprecia a política econômica, torce o nariz para a reforma da Previdência, não engole os transgênicos. Mas pergunte a qualquer um dessa esquerda do que gosta no governo Lula. A resposta sai na hora: da política externa, e entendida como o confronto com os Estados Unidos e a associação com demais países do Terceiro Mundo (do Sul) para se opor às nações ricas do Norte. Está aí, portanto, mais uma divisão perigosa no governo. De um lado, a área econômica, de olho no crescimento das exportações, coloca ênfase na necessidade de negociar. De outro, a esquerda, bem representada pelo Itamaraty, sustenta o discurso da soberania e com isso atira os demais na vala dos traidores da pátria. Querer negociar passa a ser curvar-se aos Estados Unidos. Assim, uma negociação, que deveria ser técnica, acaba dominada pela ideologia. Em boa parte, o presidente Lula estimula essa posição. Na abertura do seminário “O Papel dos Legiladores na Alca”, no último dia 20, em Brasília, o presidente passou a maior parte do tempo relacionando os riscos, as ameaças e os perigos eventuais da Alca e da predominância dos Estados Unidos. E quase nenhuma palavra sobre as enormes vantagens que o Brasil teria com maior acesso aos mercados. Isso leva, na prática, a uma recusa de iniciar negociações, o que é um equívoco e uma perda de oportunidade. A negociação não obriga a nada. É perfeitamente possível levá-la até o fim e, não sendo a conclusão satisfatória, abandonar o barco. É verdade que os EUA apresentaram propostas muito ruins tanto na OMC quanto na Alca. É verdade que abusam da atração exercida pelo seu mercado de US$ 1,4 trilhão para exigir contrapartidas desiguais dos eventuais futuros sócios. Mas é uma negociação, na qual todos começam pedindo tudo o que querem e rejeitando o resto. Como o Brasil, justamente, entra insistindo na abertura do comércio agrícola, o tema mais sensível para EUA e Europa. Fincar o pé nas diferenças iniciais e deixar de lado tudo onde pode haver acordo é a estratégia, ideológica, do confronto. É verdade que, no mesmo seminário, Lula deixou uma frase interessante. Disse que seu governo entende a importância das economias americana e européia para o Brasil e não quer uma política de "confrontação pela confrontação para atender o discurso ideológico de quem quer que seja". É a necessidade de atender dois públicos. De todo modo, o governo Lula está numa posição delicada. A próxima reunião ministerial da Alca está marcada para 20 e 21 de novembro, em Miami. O Brasil tem responsabilidade redobrada, por ser o co-presidente das negociações, com os EUA, isso num ambiente em que a maioria dos países americanos quer a Alca. Ao mesmo tempo, Lula precisa dar uma satisfação à esquerda, que está gostando muito dessa política externa de confrontar os EUA. Detalhe: em novembro, é provável que o governo esteja assinando um novo acordo com o FMI. Será dose pesada para a esquerda se, além disso, for retirado o discurso externo anti-Alca. Considerando que nos EUA há fortes posições protecionistas, o quadro não é animador para o futuro das negociações. Publicado na revista Exame, edoção 804, data de capa 29/outubro/2003

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