A tese Lupi: se o ministro não sabe que está fazendo algo errado, então pode fazer
E segue a nossa série ?Não tem nada de mais?, feita com a colaboração das autoridades quando explicam algumas situações, digamos, embaraçosas.
E vamos falar francamente: há boas mentiras, histórias bem contadas que ficam de pé por muito tempo. Há também mentiras inocentes, daquelas que todo mundo sabe, mas deixa passar.
Não é o caso das versões contadas pelo ministro Carlos Lupi. Reparem: não é que ele se esqueceu do nome e do jeitão de um eleitor qualquer, desses com os quais as autoridades vivem topando por aí, apesar dos seguranças. Ele não se lembrou de ter viajado em um jatinho com o diretor de uma ONG que tem contratos com seu ministério, nem de ter jantado na casa do empresário.
Como não se lembrava, negou. Confrontado com fotos e vídeos, mais declarações do diretor da ONG, dizendo que serviu a janta para o ministro pessoalmente, Lupi caiu em si. ?É mesmo!? ? deve ter comentado ? ?agora me lembro?.
Então ele havia mentido na primeira versão? De jeito nenhum, simplesmente não tem ?memória absoluta?, contestou, não num bate papo de bar, mas em reunião oficial no Senado.
Qual o problema? Político encontra tanta gente, freqüenta tantos almoços e jantares, impossível lembrar tudo assim de memória, explicou Lupi.
E o jatinho? Ora, ministro está toda hora viajando de jatinhos e jatões, como é que pode se lembrar em qual voou tanto tempo atrás? Mais impossível ainda é lembrar quem era o dono do jatinho ou quem pagou a viagem. Isso lá é atribuição de ministro? ? argumentou Lupi.
Vamos supor, portanto, que tenha ocorrido uma enorme coincidência. O ministro precisou de um avião confortável e um assessor desavisado providenciou o aparelho logo com um empresário conhecido e que tem negócios com o ministério.
Não haveria aí um problema ético? Não gera a suspeita de troca de favores?
Só na cabeça da mídia e da oposição. Como se pode pensar nisso, segue a argumentação do ministro, se ele nem sabia de quem era o avião ou quem estava pagando o aluguel do jatinho?
Reparem: se essa tese, digamos, faz algum sentido, então qualquer autoridade pode apanhar carona no avião de um traficante. Não teria nada de mais se a autoridade não soubesse quem estava patrocinando sua viagem.
Fico imaginando. O assessor diz ao ministro: ?arrumei um avião, excelência, o problema é que pertence ao …?
?Não me diga nada, quer me comprometer? ? adverte o ministro.
Resumindo, pois: o ministro agora sabe quer viajou em um jatinho providenciado pelo diretor da ONG que tinha interesse concreto em decisões tomadas por ele, ministro. Mas como não sabia na ocasião, não tem nada de mais. Também não tem nada de mais ter apresentado duas versões, porque a primeira fora uma traição da memória.
O problema é que o Código de Conduta da Alta Administração Federal diz, em seu artigo 7º.: A autoridade pública não poderá receber …. transporte, hospedagem ou quaisquer favores de particulares de forma a permitir situação que possa gerar dúvida sobre a sua probidade ou honorabilidade.
Ressalva e explica o parágrafo único desse artigo: . É permitida a participação em seminários, congressos e eventos semelhantes, desde que tornada pública eventual remuneração, bem como o pagamento das despesas de viagem pelo promotor do evento, o qual não poderá ter interesse em decisão a ser tomada pela autoridade.
Ou seja, não apenas a autoridade tem que saber quem patrocina sua viagem e sua boca- livre. Todo mundo precisa saber. E se a coisa toda puder gerar alguma suspeita de favorecimento, então não pode fazer.
Poderia uma autoridade alegar que não sabia dessa regra?
Claro que não, mas Lupi já deu um drible na Comissão de Ética da Presidência. Informado de que não poderia ser ao mesmo tempo ministro de Estado e presidente do PDT, e depois de ter reclamado muito, Lupi se licenciou do cargo no partido. De araque. Todo mundo sabe que ele continuou comandando o PDT. Aliás, na tal viagem, ele estava justamente num trabalho partidário. Tanto que já disse que vai devolver a diária de ministro.
Assim, viajou na condição de ministro de Estado no avião providenciado pelo diretor da ONG contratada pelo ministério, fez campanha partidária e ainda cobrou diária do bolso dos contribuintes.
Não tem nada de mais. Devolve o dinheiro e o resto se esquece, certo? O ministro ainda perguntou: estão me acusando de quê?
Presentinho?
O Código de Conduta da Alta Administração ainda esclarece: ?É vedada à autoridade pública a aceitação de presentes, salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade?. Agora, presentinhos, pode, desde que ?distribuídos por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas, não ultrapassem o valor de R$ 100,00 (cem reais)?.
Quem sabe o aluguel do jatinho saiu por uns R$ 99,99?
Publicado em O Estado de S. Paulo, 21 de novembro de 2011