Aqui o roteiro da transformação de dinheiro público em recursos políticos ou privados
O governo, diretamente ou por meio de uma estatal, faz um pagamento, dá um benefício ou presta um favor para uma empresa privada. Esta devolve parte do dinheiro e/ou retribui o favor para aqueles que, no governo, são os responsáveis pela operação inicial.
> Isso é o mensalão. Mas, reparando bem, é a estrutura de negócios, digamos assim, que ocorrem por todo país, em todos os níveis, e constituem numa transferência de recursos públicos ou concessão de vantagem especial para a área privada, incluindo aqui os partidos políticos.
> Ocorre no mundo inteiro, é verdade, mas há fatores bem brasileiros por aqui. Um é o conjunto de leis que facilitam a ?legalização? dessas operações. Outro está na cultura do ?não tem nada de mais? e do ?não tenho nada com isso?. O terceiro é a tecnologia desenvolvida por agentes públicos e privados.
> Os advogados de defesa, atuando no caso mensalão, recorrem fartamente esses três fatores. Sustentam, com veemência, uma obviedade: é legal um banco emprestar dinheiro para um partido, nas condições que a instituição financeira considerar boas.
> Mesmo quando o banco em questão busca um favor, uma concessão, um negócio com o governo federal, este controlado pelo partido que recebe o empréstimo?
> Não tem nada de mais. Bancos e empresas negociam com o setor público o tempo todo, não é mesmo? Só porque o banco está em tratativas com o governo ficaria proibido de emprestar dinheiro para clientes que selecionasse?
> E as malas de dinheiro, os saques em caixas especialmente montados, com funcionários especialmente designados, às escondidas?
> De novo: tem alguma lei proibindo isso?
> O fato de o negócio ter a intermediação de uma agência de publicidade, ela também tendo, digamos, operações com o mesmo governo e os mesmos agentes públicos, quer dizer alguma coisa?
> Nada, dizem. Uma coisa é o contrato de publicidade, outra a operação bancária e outros ainda os serviços prestados. Os advogados de defesa, quando dizem que é preciso ter provas concretas, baseiam-se justamente nessa tese. Não haveria nada, sustentam, provando que o banco só fez o empréstimo porque queria alguma coisa em troca do governo e de seus partidos políticos.
> Esse argumento aparece em todos os casos de denúncias de corrupção. A empresa obteve um contrato e, passo seguinte, faz uma doação política. Qual o problema?
> Mesmo assim, para que a tese faça algum sentido, inclusive jurídico, é preciso que o contrato tenha sido legal. E aqui aparece a farta tecnologia de montar essa legalidade.
> Agências e contratos de propaganda são instrumentos perfeitos. Há casos em que se pode avaliar se as vendas de uma empresa aumentaram por causa da publicidade. Isso é objetivo. Mesmo nesta situação, porém, a escolha da campanha tem um alto grau de subjetividade.
> Há muitas agências de qualidade no Brasil. Abre-se uma licitação para vender cartões de crédito, por exemplo, e certamente aparecerão muitas propostas igualmente boas, mas cuja eficiência concreta só poderá ser verificada posteriormente. Como escolher?
> Considere, ainda mais, esse tipo de propaganda que tem sido feito por administrações em todos os níveis e que, tudo considerado, diz apenas: este governo é muito bom.
> Não há dúvida: o agente público tem ampla margem para escolher a agência que quiser.
> O outro lado da tecnologia é como a agência transfere parte de seus ganhos para o líder político e seus partidos. Pode ser um simples favor, como trabalhar de graça na campanha, ou podem ser as malas de dinheiro, o conhecido ?caixa dois?.
> Ressalva: não estamos dizendo que todos os contratos são uma fraude, muito menos que todas as agências são corruptas. Estamos dizendo que há amplo espaço para diversos tipos de manobras, conhecidas e justificadas na prática política local.
> De novo aqui, temos a combinação de aparente legalidade com o ?não tem nada de mais?. Caixa dois, por exemplo, não tem nenhum problema, não é mesmo?
> Finalmente, o ?não tenho nada com isso?, o argumento dos superiores que nunca se julgam responsáveis pelo que fazem os subordinados. Nem sabiam.
> Eis por que será realmente difícil e, sem exagero, histórica a decisão do Supremo. A Corte vai confirmar ou colocar um basta nessa prática dominada pela ?legalidade? arranjada e pela cultura do ?não tem nada de mais?.