Azar, claro. A falta de chuvas e o calor excessivo estão fora da curva, eram imprevisíveis. E, de certo modo, continuam assim. A temporada molhada no Sudeste e Centro-Sul, na teoria e na experiência de décadas medidas, vai até abril, de modo que a torcida ainda faz sentido. Não é possível que não chova mais, tal é o sentimento.
É verdade que, em 2001, o pessoal do governo FHC ficou dizendo isso até o momento em que não choveu mesmo e foi preciso fazer o racionamento. E, sem querer ser pessimista, certas situações hoje são até piores.
Em compensação, aí estão as termelétricas, movidas a gás, carvão e óleo, cuja construção foi uma das medidas tomadas em consequência da crise de 2001. Nem toda herança é maldita, não é mesmo?
Assim, esperemos pelas chuvas até abril. Mesmo técnicos mais críticos das opções do governo pensam desse modo. Sugerem, entretanto, que se deve preparar para o pior, ou seja, o governo deveria já estar promovendo economia de energia e ter pronto um plano de racionamento.
Programas de economia não existem. Quanto ao plano de racionamento, tudo bem se o pessoal do governo Dilma não quer falar disso, assunto que azedaria ainda mais o humor em relação ao andamento da economia. Falta de energia vai na veia do PIB, suga crescimento. Mas deveria ter o plano no gaveta.
Não adianta só esperar e torcer. Muitas das consequências da seca e do calor já foram dadas. Vieram antes das chuvas. Preços de alimentos estão em alta, puxando a inflação de março e do meio do ano. E o buraco nas contas do setor elétrico já passa dos R$ 35 bilhões, na avaliação do governo. Esse é o tamanho do prejuízo especialmente das distribuidoras, levadas a uma situação em que precisam vender energia a preço menor do que compram. Esse rombo está sendo coberto com dinheiro do Tesouro, logo, dos contribuintes, e de fundos do setor elétrico. E terá de ser recuperado com aumentos de tarifa ao consumidor.
São, portanto, três consequências: alta imediata da inflação, expectativa de mais alta pela recomposição das tarifas e aumento do gasto público num momento em que o governo federal promete controle de despesas.
Tudo seria contornável, se a política econômica estivesse nos trilhos. Por exemplo: todo mundo concorda que uma alta de preços provocada pela seca não deve ser combatida com aumento de juros. O regime de metas de inflação prevê essas emergências.
No caso nosso, a meta de inflação é de 4,5% ao ano, com uma margem de tolerância de dois pontos, exatamente para uma circunstância como a atual. Funciona assim: a inflação está rodando na meta, vem um choque de preços de alimentos e o Banco Central informa que vai tolerar uma inflação um pouco mais alta até que o clima melhore e a produção de comida volte ao normal.
Todo mundo compreenderia. Hoje, porém, todos aqui olham desconfiados para o Banco Central porque não existe a margem de tolerância. Há muito tempo o BC aceita uma inflação rodando perto do teto da meta, em torno dos 6%. É como se já tivesse usado o seguro, não tendo mais direito. A tolerância agora é inflação na veia e exige mais juros.
Não é por causa do azar da seca. É porque a política monetária já vinha errada.
Vale para o reajuste de tarifas. O governo poderia perfeitamente dizer: pessoal, essa seca é um azar danado, imprevisível, por isso vamos precisar economizar energia e pagar mais caro por um bem mais escasso.
De novo, já gastou esse seguro. A inflação alta há três anos não absorve mais choques. E como aumentar a tarifa depois de dizer que este governo foi o único que pensou no povo e reduziu a conta de luz?
Vale também para as contas públicas. Se os gastos estivessem controlados, se a contabilidade fosse normal, sem truques, e se o superávit primário estivesse na meta, todo mundo compreenderia um desvio para lidar com os efeitos da seca.
O governo poderia anunciar: vamos tirar uns 30 bi do superávit primário, em três ou quatro anos, para pagar a conta das termelétricas; depois a gente recompõe o saldo. Quem seria louco de pedir mais superávit e menos energia?
De novo, esse seguro foi torrado. A despesa criada pela seca cai sobre contas já deterioradas pela política, equivocada, de estimular consumo público e privado. (Aliás, estimulou-se, e muito, o consumo de energia).
Foi um baita azar, portanto. Mas um azarado que joga mal . . . .