NA REFORMA DA PREVIDÊNCIA NÃO EXISTE EMPATE

. Não existe empate No jogo da reforma da Previdência, ou perdem os servidores ou perde o governo – e o Brasil Só haverá Reforma da Previdência se os servidores públicos forem perdedores em relação à sua situação atual. Desgraçadamente, este é um daqueles momentos, que acontecem na história de todos países, em que uma solução boa para a sociedade – no caso, a estabilidade financeira e fiscal do setor público – impõe perdas imediatas para determinado grupo social. A dificuldade da negociação está aí. Por certo, podem ser perdas maiores ou menores, mas a relação com a eficiência da reforma é inversamente proporcional aos interesses imediatos dos funcionários: quanto maiores as suas perdas, maior a eficiência da reforma. As perdas maiores que se podem impor são duas: a extinção da aposentadoria integral e a da paridade entre salários da ativa e da inatividade. Ocorre que essas duas vantagens em relação aos demais trabalhadores são consideradas quase como um direito sagrado pelos funcionários. Não é de se estranhar que seja assim. Toda organização ou categoria social tende, sempre, em qualquer país, a olhar para seu próprio umbigo e enxergar nele uma representação da sociedade inteira. Aqui como na França, os sindicatos de funcionários públicos consideram a reforma da Previdência como uma ameaça não a seus interesses, mas ao interesse geral da sociedade em manter um serviço público de qualidade. Como têm dito os chefes do Judiciário local: sem aposentadoria integral e sem paridade, os homens e mulheres mais qualificados não terão interesse pela profissão de juiz; sendo a falta de bons juízes uma situação ruim para a toda a sociedade, segue-se que . . . Pode ter lógica, mas não faz sentido. Não há aposentadoria integral nem paridade nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Finlândia, como aliás não há na quase totalidade dos países, e não consta que seus juízes sejam piores que os nossos. Na verdade, em comparação com os funcionários públicos dos demais países, os brasileiros acumulam mais privilégios: além daquelas duas vantagens, têm ainda estabilidade no emprego e seu salário médio equivale a quase quatro vezes a renda per capita nacional. Nos Estados Unidos, o servidor público ganha em média 70% mais, na mesma comparação. Trata-se, é verdade, de um país que preza o liberalismo e a iniciativa individual, procurando limitar o Estado. Mas na França, onde a população espera quase tudo do Estado, o servidor ganha em média três vezes mais que renda per capita. Tudo considerado, portanto, o fato é que o servidor brasileiro tem uma situação previdenciária melhor que a dos trabalhadores do setor privado e proporcionalmente melhor que os empregados do Estado em outros países. Nunca é demais frisar: não existe aposentadoria integral nem paridade em nenhum país relevante. Sendo a Previdência Pública uma gigantesca fonte de déficit, não há como resolver o problema – e garantir equilíbrio de longo prazo ao Estado – sem retirar os privilégios (na visão geral) ou os direitos dos funcionários, na intepretação deles. Por que essa reforma parece, e é, politicamente tão difícil? Pela mesma razão pela qual os servidores conseguiram tantas vantagens. Todas as categorias, já se notou, tendem a se voltar pars seus próprios interesses e poderes. Mas no mundo todo os funcionários públicos parecem mais bem sucedidos nessa tarefa de construir uma teia protetora. Uma explicação para isso é que fazer leis, interpretá-las e aplicá-las constitui função cuja execução depende de funcionários dos diversos setores e níveis do poder público. É quase natural que tenham atenção especial pelas leis e regulamentos que os interessem de perto. Seria por acaso que os salários no Judiciário e no Ministério Público, que interpretam e zelam pela aplicação das leis, sejam os mais elevados? Seria por acaso que os sevidores públicos sejam o grupo que mais tem demanda judicial contra o Estado? Também seria por acaso que os melhores salários pertençam às categorias que estão mais perto dos gabinetes e centros de decisão? Mas é preciso, para o bom entendimento do assunto, desqualificar o preconceito segundo o qual os funcionários públicos não passam de um bando de aproveitadores que ficam o tempo todo procurando brechas na lei que garantam mais uma vantagem. Não faltam exemplos de eficiência, qualidade e dedicação no serviço público brasileiro, inclusive daqueles funcionários que ganham os mais baixos salários e desfrutam de menores vantagens. Há patriotismo e efetivo esforço de fazer as coisas funcionarem mesmo em condições precárias, como é a regra. A propósito, boa parte do funcionalismo compreende a necessidade da reforma da Previdência. É o pessoal que aceita o argumento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o qual dentro de poucos anos não haverá dinheiro para pagar nem um direito sequer se a reforma não for feita já. Lula repetiu o argumento na entrevista à emissora de rádio BBC, na sua viagem a Londres. Nesse sentido, a reforma prejudique interesses imediatos dos funcionários mas preserva interesses de longo prazo deles e da sociedade. Lula disse também: “Eu acho que a melhor coisa para a Previdência Social brasileira é o projeto original (de reforma) tal como o governo apresentou”. Colocou essa frase quando respondia a perguntas sobre as negociações no Congresso, incluindo líderes de seu governo, que, no primeiro momento, produziram um acordo para garantir a aposentadoria integral e a paridade para os atuais e futuros servidores. O acordo vem sendo desfeito desde então e as palavras de Lula, embora ressalvando a posição do Congresso, recolocam o processo tal como estava antes das negociações. O presidente da República considera justo e correto um sistema único de previdência pública, com teto de aposentadoria, e, portanto, sem integralidade e paridade para quem quer seja. O prjeto apresentado pelo governo federal, com apoio dos governadores estaduais, visa três objetivos: alívio imediato nas contas públicas (com a redução do valor das asposentadorias, o prazo maior para obtenção do benefício e o aumento das contribuições, inclusive dos inativos); equilíbrio atuarial de médio e longo prazo; e justiça social, na medida em que elimina diferenças entre servidores públicos e trabalhadores do setor privado. Decorre daí que é muito estreito o espaço para negociações com os sindicatos dos servidores e com as demais lideranças da categoria. O pedido inicial do pessoal que entrou em greve – pela retirada do projeto de reforma – não faz sentido, mas não é daí que vem a resistência mais eficiente. Esta se desenvolve nas negociações de bastidores envolvendo os principais funcionários, como os chefes do Judiciário. Essas lideranças sabem que é preciso entregar alguma coisa para salvar o que consideram essencial. Daí que estão topando regras de aposentadoria bem mais rigorosas para preservar a integralidade e paridade. Mesmo porque, preservados estes pontos, sempre será possível mais à frente aliviar as regras. Para o governo Lula, a questão é a seguinte: será preciso fazer alguma concessão para que seuas bases aceitem a reforma. Mas pequenas concessões limitam o alcance da reforma e seu significado no cenário econômico e político. E grandes concessões eliminam a própria reforma. Tudo considerado, a rigor o governo só pode topar uma única mudança importante: manter a aposentadoria integral para os atuais servidores, mas impondo regras para sua obtenção que sejam ao mesmo extremamente rigorosas, e pois acessíveis a poucos, e permanentes, para que não possam ser flexibilizadas. Tudo considerado, no nível imediato da política e da economia, o jogo está assim: ou perde o governo ou perdem os servidores. No médio e longo prazos, se a reforma vier a ser aprovada, ganha a sociedade, ganha o país. Mas, repetindo Keynes, todos hoje podem dizer: no longo prazo estaremos todos mortos. Publicado na revista Exame, edição 797, data de capa 23/08/2003

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