—Dilma e Mantega teriam mudado de ideias ou aplicam uma política da qual desconfiam?–
Tudo bem, política econômica não é uma questão de fé, mas precisa de um pouquinho de crença. Se os governantes não acreditam na política que aplicam, a coisa acaba saindo mal feita. Com o modelo vigente no país, a inflação deve ser atacada com aumento de juros (pelo Banco Central) e controle dos gastos públicos (pelo governo federal). Isso está sendo feito, mas pela metade. É como se a presidente Dilma, o ministro Mantega e o presidente do BC, Alexandre Tombini, tivessem vergonha do que fazem. Assim, aplicam doses pequenas que não matam a doença e vão acabar exigindo remédios mais fortes lá na frente, com danos colaterais mais doloridos.
O ministro, por exemplo, recusa as expressões ?redução de gastos? ou ?ajuste fiscal?, que todo mundo utiliza. Diz que está aplicando uma ?consolidação fiscal?. É a mesma coisa ? o governo gasta menos para ajudar a reduzir a atividade econômica ? o que caracteriza uma política ortodoxa (ou mesmo neoliberal). Mas não digam isso perto de Mantega. Ele tomará como um insulto.
Esse tipo de política ortodoxa leva necessariamente à redução do crescimento. Aliás, o objetivo é esse mesmo: entende-se que o país está crescendo mais do que pode, o consumo crescendo mais rápido que a produção, disso resultando a alta de preços, de modo que é preciso conter a demanda com juros altos e gasto público menor. Mas a presidente Dilma já rejeitou a tese de que há limites relativamente estreitos ao crescimento brasileiro e disse mais de uma vez que sua política de combate à inflação não vai derrubar a economia.
Ora, se não derrubar, a inflação não cede. É claro que a dosagem é importante. Todo governo, quando aplica o ajuste, tenta fazê-lo de modo a causar o mínimo prejuízo possível. Aliás, é a parte mais difícil da política econômica encontrar esse equilíbrio. Mas não há como não derrubar a economia.
Quando não se admite isso, o governo corta ?um pouquinho? dos gastos. No caso, nem corta. Mantega e Dilma (e muitos analistas) acreditam que basta reduzir o ritmo de crescimento das despesas públicas. Ou seja, estes continuam crescendo, são maiores do que no passado, mas a expansão se dá em velocidade mais lenta do que nos períodos anteriores.
De sua parte, o BC sobe os juros, mas bem devagarzinho. Resulta disso um desencontro entre os discursos dos diversos membros do governo e entre discursos e realidade.
A presidente declarou-se implacável no combate à inflação, colocada como inimiga brava. Já Mantega não perde a oportunidade para dizer que a inflação nossa não é lá essas coisas, que foi provocada por preços internacionais de alimentos e comodities, que isso acontece no mundo todo. É como se não precisasse fazer nada: assim como subiram, um dia aqueles preços internacionais hão de cair e tudo se resolve.
Desse modo, não haveria por que aplicar um arrocho (juros altos e corte forte no crédito e nos gastos públicos). Já o BC diz nos seus relatórios que há, sim, uma inflação resultante de aquecimento da economia brasileira, que o gasto público põe lenha na fogueira e que o crédito do governo aos bancos públicos limita a força da política monetária.
Mas escreve isso bem baixinho ? ali no meio dos parágrafos, sem ênfase. E solta comentários inesquecíveis. Diante de sinais inequívocos de alta de inflação e piora das expectativas, na linha contrária do que havia antecipado, o BC decretou: as condições inflacionárias não melhoraram. É como se o médico, ao verificar que a pressão do paciente subira de 15/10 para 20/15, comentasse: o senhor não melhorou, cuidado com o sal.
Fora do governo, entende-se mais ou menos o seguinte: com dosagem limitada, a economia desacelera moderadamente e a inflação cede ao longo de um tempo mais dilatado, isso se der tudo muito certo, aqui e lá fora. E mesmo dando certo, isso significa que os brasileiros terão de conviver com perda de poder aquisitivo por um longo período.
Mas muitos (inclusive este colunista) entendem que é alto o risco de algo não dar certo e o governo ser obrigado a aplicar doses maiores de juros e cortes de gastos para segurar uma inflação perigosamente ?não melhorada?.
Ou seja, há desconfiança em relação à estratégia governista. O que provoca curiosos debates. Nesta semana saíram dados mostrando que a economia brasileira acelerou no primeiro trimestre de 2011. O governo, posto que não quer derrubar a economia, deveria comemorar, não é mesmo?
Nada disso, Mantega, Tombini e seus colaboradores dizem que a economia está, sim, desacelerando e que isso logo vai ficar mais evidente. E que, por isso, a inflação vai cair. Mas quando a crítica vem dos economistas desenvolvimentistas (grupo ao qual Dilma Roussef e Mantega sempre pertenceram) e sustenta que o governo está sendo ortodoxo quando deveria ter coragem de derrubar juros e desvalorizar o real, eles, governantes, mudam o discurso. Que ajuste fiscal? É só uma consolidação, pessoal.
Resumo da ópera: temos uma política estrutural ortodoxa, mas meia-boca e medidas não ortodoxas (controle da entrada de capitais, por exemplo, também com aplicação meia-boca.
Publicado em O Globo, 26 de maio de 2011