MALAN TAMBÉM GANHOU

. Malan ganhou Mais o governo Lula começa a trabalhar e mais a gente conclui: o ministro Pedro Malan também ganhou a eleição. Pode parecer estranho depois do fato político básico – os 54 milhões de votos na mudança – e depois da primeira reunião ministerial do futuro governo, sexta passada, na qual se apontou o dedo para a pesada herança. Mas olhem pelo outro lado, para medidas e objetivos enunciados por Antonio Palocci, o Malan de Lula. Disse ele que um objetivo essencial é buscar uma taxa de câmbio de equilíbrio, nem sobrevalorizada, nem muito desvalorizada, já que a disparada do dólar é a causa primária de todas as dificuldades econômicas deste ano. O mais importante, entretanto, não está na fixação do objetivo. Está no esclarecimento de que essa estabilização não será perseguida com meios exóticos. O que são meios exóticos no câmbio? São medidas de controle e congelamento da cotação, controle da entrada e saída de dólares, proibição de saída de divisas, receituário de ruptura de contratos que normalmente consta de governos de esquerda à antiga. Nada disso se fará. Na mesma sexta-feira, o futuro presidente do BC, Henrique Meirelles, esclareceu que as distorções no câmbio serão corrigidas pelo mercado. Bom, aí, Pedro Malan assina embaixo. Idem para Armínio Fraga. Palocci também anunciou o propósito do novo governo de implementar a reforma do artigo 192 da Constituição, que trata do sistema financeiro, com o objetivo de dar ao BC os instrumentos e autonomia para ser o guardião da moeda. De novo, podem perguntar a Malan. Ele assina. Fraga também, este levantando para aplaudir. Há anos ele fala disso, geralmente acusado de querer perpetuar a diretoria do BC (que aliás, está ficando toda ela, à exceção apenas do próprio Fraga). Palocci também adiantou que a dívida dos Estados não será negociada. E aqui é Malan que aplaude de pé. O ministro que deixa o cargo sempre entendeu que a renegociação da dívida dos Estados e principais municípios foi uma dos seus maiores êxitos de sua gestão. O governo federal pagou caro: assumiu as dívidas estaduais, que hoje financia a juros de mercado, mas cobra a juros subsidiados. A atual equipe econômica considerou que foi o preço a pagar para garantir a sequência dos contratos. Hoje, se não pagarem, os Estados e municípios perdem direito a repasses federais, não podem tomar novos financiamentos. E a União não pode mais refinanciar os governos estaduais e prefeituras, eliminando de vez uma prática histórica dos governadores estaduais, a de gastar por conta e depois fazer pressão para tomar dinheiro em Brasília. Em resumo, a renegociação, os contratos e, finalmente, a Lei de Responsabilidade Fiscal engessaram as administrações subnacionais, obrigando-as a produzirem superávits primários para o pagamento das prestações mensais. É uma das grandes diferenças entre Brasil e Argentina, onde as províncias gastavam e até criavam moedas paralelas sem nenhum controle. Governadores e prefeitos petistas e o próprio Lula costumavam dizer que o governo federal asfixiava os Estados com tais contratos. Exigiam a renegociação. Pois vem Palocci, na primeira reunião formal do novo governo, e diz que a renegociação é impossível, que seria um erro, que desarrumaria as contas públicas. “Bravo, bravo”, pode-se ouvir Malan. Finalmente, Palocci disse que a prioridade é rever a legislação previdenciária, pois a Previdência “é o principal componente do déficit público” em todos os níveis da federação. Ali mesmo na platéia do futuro governo, na reunião de sexta, estava um futuro ministro, Waldir Pires, que deve ter se arrepiado. Ele – como outros companheiros – sustenta que não há déficit na Previdência e que essa história de déficit é uma invenção do governo neoliberal de FHC. Talvez tenha passado uma ponta de dúvida na percepção de Pires: estaria ouvindo quem? Eis aí, Malan levou mais essa. E mais ainda quando se considera o conjunto da situação. Há menos de três anos, a CNBB promovia o plebiscito no qual propunha o calote na dívida pública. Um plebiscito, sabemos, não propõe nada, pergunta. Mas depende do modo de perguntar, como sabem ditaduras pelo mundo afora. E o da CNBB, em resumo, perguntava algo assim: você é a favor de pagar juros aos especuladores ou de usar o dinheiro para matar a fome dos pobres? O PT embarcou no plebiscito e Malan saiu a campo, atacando aquilo como uma imensa irresponsabilidade. Dizia que um partido que almejava o poder, e que poderia vir a alcançá-lo, deveria assumir a regra universal do respeito aos contratos e, pois, a rejeição de qualquer tipo de calote e/ou moratória. Muitos entenderam o gesto de Malan como eleitoral: ele estaria se posicionando como o candidato que ia polarizar com o PT. O tempo mostrou que não era isso, que o objetivo do ministro era mesmo introduzir na agenda de política econômica os pontos hoje considerados essenciais a qualquer gestão responsável, quer de esquerda, quer de direita: não pode ter inflação, as contas públicas precisam estar equilibradas, não pode ter calote na dívida pública, os contratos (inclusive aqueles com o FMI e com os demais credores) têm que se ser cumpridos. Tudo isso foi contestado e continuava contestado quando começou a campanha – e esteve aí a causa principal da disparada do dólar. Depois, sabemos o que aconteceu: o PT iniciou um processo de moderação que veio dar onde? Na agenda Malan. Pode-se perguntar: e as críticas do futuro governo, segundo as quais recebe herança pesada? Bom, a herança é de fato pesada – dívida, dólar e inflação estão elevados – como qualquer um percebe. Não é esse o ponto, porém. A questão é saber como chegamos a este ponto e qual o receituário para sair disso. A discussão sobre as causas demora mais. Mas o receituário indicado por Palocci não deixa dúvida: essa, o ministro Malan levou. Tardiamente, mas a agenda mudou. Se é consolo . . . De todo modo, isso não garante ao futuro governo nem o êxito nem o fracasso. Malan ou não, a agenda continua difícil, especialmente a crucial reforma da Previdência. Sem contar o mundo hostil, mas isso é a outra história – a que começa no dia 1o. Publicado em O Estado de S.Paulo, 30/12/2002

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