LIVRE MERCADO X INTERVENÇÃO DO GOVERNO

. Artigos MANIPULANDO MERCADOS Duas críticas atacaram a decisão do presidente Bill Clinton de vender barris de petróleo da reserva americana para forçar uma queda de preços no mercado internacional. Uma acusou a medida de eleitoreira, já que foi anunciada um dia depois de o candidato democrata Al Gore, vice de Clinton, ter levantado a idéia. A segunda crítica teve a ver com fundamentos econômicos. A venda teria sido uma manipulação de mercado, uma intervenção do Estado, que poderia dar algum resultado positivo a curtíssimo prazo e, certamente, muitos resultados negativos no prazo mais longo. O argumento é o clássico: os mercados funcionam e punem essas intervenções externas. Interessante que essa mesma discussão, no mesmo momento, envolveu outra intervenção no mercado, desta vez no financeiro: a compra de euros pelos bancos centrais dos Estados Unidos, Europa, Inglaterra e Japão, com o objetivo de sustentar a cotação da moeda que parecia em queda livre. Eis o caso, portanto: no coração do mundo capitalista, ali onde se propagam as idéias de livre mercado, governos se metiam a controlar preços de uma comodity estratégica e de um preço tão essencial como a cotação de uma moeda central. E tudo por razões políticas, já que um euro fraco enfraquece os governos que adotaram. Mas não é simples assim. Começando por Clinton: houve uma jogada eleitoral, mas não se pode concluir que o presidente liberou as reservas só para ajudar Al Gore. Esse tipo de irresponsabilidade não bate com o retrospecto do presidente. Como pessoa física, ele caiu em tentação, mas na jurídica seu governo é sério e bem sucedido, como indicam as pesquisas de opinião. A jogada eleitoral foi diferente. Clinton primeiro decidiu vender reservas, com base numa avaliação econômica. O preço do barril passava dos 35 dólares, alta exagerada, puxada por forte especulação aplicada em cima de uma situação de oferta reduzida pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo. E petróleo caro por muito tempo, indicam os precedentes, gera inflação e reduz o crescimento mundial. Mas uma vez tendo decidido vender reservas, por que não tirar uma vantagem eleitoral? Não é falta grave. Já tentar manipular preços internacionais, isso é grave. Assessores de Clinton se defenderam dizendo que a venda de reservas foi uma resposta à especulação dos operadores e à manipulação, esta sim, praticada pelos países do Opep. Ou seja, uma contra-manipulação e uma contra-especulação para restabelecer a verdade do mercado – gostaram dessa? – uma manipulação para o bem. Mas contra ou a favor, manipulação é manipulação. Ao intervir, o governo americano está dizendo que ele, governo, e não o mercado, é que sabe qual o preço adequado do petróleo. Do mesmo modo, os bancos centrais dos países desenvolvidos, ao comprar euros para levantar sua cotação, estão dizendo que o mercado internacional, livre e aberto, fixou um preço errado para a moeda européia. Então, os mercados não sabem? Oferta e procura não bastam para definir preços? A resposta certa a essas perguntas leva a um dilema: mercados perfeitos sempre sabem, mas não há mercados perfeitos. Como os graus de imperfeição são variados, a análise e a política econômica estão sempre tentando saber quando o mercado está funcionando, quando não, quando intervir, quando não fazer nada. O mercado derrubou os preços do petróleo nos anos 90, sobrepondo-se às intervenções da Opep, e depois o mesmo mercado propiciou a alta do ano passado. Eis como se passou: até os anos 70, tirava-se um barril de petróleo na Arábia Saudita (ou Emirados Árabes, ou Kuwait) por menos de um dólar e se vendia no mercado internacional a três, quatro dólares. Tirar petróleo do mar do Norte, do mar brasileiro ou do Alaska saía por mais de dez dólares. Ficava lá. De repente, o preço, por ação cartelizada da Opep, que tinha o domínio do mercado, salta para 30 dólares o barril. Isso estimula a busca de energia alternativa, antes mais cara, e viabiliza campos pelo mundo afora. Diversos outros países começam a produzir petróleo, o que aumenta a produção e reduz o peso relativo da Opep. O preço despenca e vai abaixo de dez dólares o barril. E com isso, aqueles outros campos tornam-se de novo economicamente inviáveis. Reduz-se a produção dos não-membros da Opep e isso coincide com uma fase de expansão da economia mundial. O preço volta a subir, mas até aqui foi o mercado. Aí, a Opep, de novo em posição de força, retira alguns milhões de barris do mercado e atira as cotações para acima dos 30 dólares. Deixando assim, o mercado provavelmente resolveria percorrendo de novo a sequência invertida: petróleo caro, energia alternativa, outros campos, etc. etc. Os preços cairiam de novo. Só que no meio do caminho tem inflação, recessão, desemprego. Por que não introduzir no mercado a mãozona do governo para abreviar a solução, a custo menor? O mesmo para o caso do euro. Os melhores fundamentos da economia americana justificam a desvalorização do euro em relação ao dólar. Mas a Europa não está caindo aos pedaços. Cresce menos que os EUA, mas cresce em ritmo bastante sustentável. Pelos fundamentos do mercado, faz sentido um euro mais fraco, não despencando ladeira abaixo. Se isto acontece, é por causa da mão não menos visível da especulação ou do pânico dos mercados. Os bancos centrais entram no jogo para restabelecer o fundamento. O problema desse raciocínio é levar à religião contrária. Se os governos e os bancos centrais sabem quando o mercado está ou não funcionando, e fazem intervenções corretas, então um sistema de intervenção permanente faria com que os mercados andassem sempre nos trilhos. Certo? Errado. Isso é dizer que você precisa controlar os mercados para que eles sejam livres. É a lógica dos ditadores – que você precisa controlar os movimentos e idéias dos cidadãos para que sejam corretamente livres. O limite da intervenção é o próprio mercado. Os bancos centrais podem bloquear a derrocada do euro, mas não podem levá-lo mais alto que o dólar, nem definir a sua cotação exata. A intervenção de Clinton bloqueia a especulação e a ação da Opep, mas a médio prazo o preço do óleo será definido pelo balanço entre produção e consumo. (De modo que uma boa ação governamental, por exemplo, é estimular a produção e desestimular o consumo). E se alguém tentar tabelar o preço mundial do óleo, vai dar escassez e câmbio negro. Eis aí, nem o mercado faz mágicas, nem os governos resolvem. Se os mercados fossem perfeitos ou, inversamente, se as intervenções dos governos sempre precisas, a economia política seria ciência exata e governar seria muito fácil. Não é assim. É preciso descobrir a cada momento, o que torna análise e política mais instáveis, entre erros e acertos. Os que sentem desconfortáveis com isso, buscam um dogma, mercado ou governo. Quem não gosta de dogmas, vive sempre a perigo, mas é mais divertido e funciona melhor, por incrível que pareça.

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