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A notícia tem sido muito bem recebida por aqui: o norte-americano David Neeleman, que já fundou três companhias aéreas nos EUA, uma das quais a revolucionária JetBlue, vai criar a quarta, agora no Brasil. Além do dinheiro próprio que traz dos EUA, Neeleman recolheu mais investimentos externos, de George Soros e de um fundo de São Francisco, aos quais se juntarão, minoritariamente, acionistas brasileiros.
Portanto, o que temos? São capitalistas estrangeiros desembarcando no Brasil para competir no mercado local, que é um duopólio, controlado pela Tam e Gol/Varig. Logo, é de fato boa notícia, sobretudo porque a nova companhia vai voar com jatos da Embraer, não utilizados pelas empresas brasileiras.
Não se pode encontrar melhor exemplo dos efeitos positivos do investimento estrangeiro. O negócio de Neeleman traz capital, tecnologia, expertise, encomendas para empresas locais, gera empregos e cria uma competição que vai beneficiar todos os passageiros.
Mas, esperem um pouco. Isso pode? Lembrem-se, a lei brasileira, para proteger o mercado da invasão predatória dos imperialistas, determina que só brasileiros podem ser donos de companhias aéreas e que os estrangeiros podem ter até 20% do capital.
Na empresa de Neeleman será o contrário, os brasileiros terão menos de 50%. Ilegal, não fosse um detalhe.
Há 48 anos, os pais de David Neeleman passaram um tempo no Brasil e aconteceu de o menino nascer no Rio de Janeiro. O gringo é carioca! Um acaso, mas quem nasce no Brasil é brasileiro.
Mas David é também norte-americano. Na verdade, é essencialmente norte-americano. Fez sua vida nos EUA, abriu seus negócios lá, ganhou dinheiro lá, nunca teve atividade empresarial no Brasil.
Do ponto econômico, digamos assim, a questão não deixa dúvidas: trata-se de um empresário estrangeiro que traz dinheiro de fora para entrar num negócio reservado a brasileiros. Só é legal por acaso, o que evidencia o absurdo da situação e da lei.
Imaginemos que os pais de David tivessem decidido ter o filho nos EUA, lá perto de sua família, e que a história posterior seguisse exatamente a mesma. Teriam voltado ao Brasil com o bebê, que cresceria pelo Rio de Janeiro nos primeiros anos e depois seguiria para tocar a vida e os negócios nos EUA. Teria feito tudo exatamente igual, três companhias aéreas, a JetBlue, e teria inclusive mantido interesse e afeição pelo Brasil. E aí resolveria fundar sua companhia aérea brasileira.
Não pode, diriam nossas autoridades, o senhor é um gringo e não pode vir aqui tomar mercado de nossos compatriotas. O país ficaria sem todos os benefícios óbvios que a nova companhia vai trazer.
Em resumo, se a mãe de David tivesse resolvido ter o filho nos EUA, a gente teria perdido uma companhia aérea.
E quantos outros bons negócios estaremos perdendo por conta desses acasos e da lei?
Nas falhas
Em recente entrevista para a Associated Press, Neeleman disse que o mercado de aviação nos EUA está em crise e caminhando para crise pior. Causas: custos elevados, a começar pelo petróleo, economia em desaceleração e feroz competição, com preços baixos nas passagens. Por isso, disse o empresário, não abriria uma nova companhia nos EUA nem que lhe dessem todo o capital.
Por razões inversas, vai abrir a empresa brasileira. No Brasil, comentou, há um duopólio (logo, menos competição), as passagens são 50% mais caras do que nos EUA, não há serviço ferroviário de passageiros.
Também faltam aeroportos, o que leva a uma concentração de vôos, mais econômico para as empresas.
O mercado brasileiro é atraente por suas falhas.
No índice
Conta-se que, no tempo do regime militar, anos 70, um ministro descobriu um método infalível de combater a inflação. Quando os técnicos informavam que o preço da carne tinha estourado, o ministro perguntava: ?Mas o pessoal está comendo carne??
E quando lhe respondiam ? ?bom, o consumo diminuiu, lógico, com esse preço!? ? o ministro determinava: ?se não estão comendo, não influencia no custo de vida, logo, sai do índice?.
Hoje, na democracia e dada a extraordinária qualidade dos institutos que medem preços, é impossível manipular os números.
Ou seja, é preciso combater não o índice, mas a inflação, segundo todos os índices.
Publicado em O Globo, 08 de maio de 2008