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Verso e reverso
Duas notícias da semana passada mostraram lados diversos de uma mesma história. Primeiro, foi a ata do Banco Central anunciando que a taxa básica de juros voltará subir e permanecerá elevada por um período prolongado de tempo. Não disse quanto vai subir, nem quantos meses formam um ?período prolongado?, mas coisa leve não é.
Na sexta, a segunda notícia, sobre as contas do setor público. O governo (federal, estaduais e municipais) fez, no ano passado, um superávit primário de R$ 81,1 bilhões, equivalentes a 4,6% do Produto Interno Bruto (PIB). É maior do que havia sido combinado com o FMI (4,25%) e maior que a meta ajustada pelo próprio governo, de 4,5%.
Superávit primário é a economia que governo faz em suas despesas de pessoal, custeio e investimento. Portanto, receitas totais menos despesas, exceto as despesas financeiras. E essa economia é justamente para pagar a conta de juros, que foi alta, de R$ 128,2 bilhões, ou 7,29% do PIB.
Faltaram, portanto, cerca de R$ 47 bilhões para completar a conta de juros. Esse montante foi rolado, incorporado á dívida, ou seja, o setor público tomou dívida nova para pagar juros da antiga.
Mesmo assim, a dívida pública total caiu como proporção do PIB, dado justamente o forte crescimento da economia. A relação Dívida Líquida do Setor Público/PIB caiu de 57,2% em 2003 para 51,8% em dezembro último. Foi a primeira vez em dez anos que se obteve uma redução desse endividamento, que é um dos mais importantes itens para se medir a capacidade de pagamento de um país. E, portanto, para medir o risco país.
Notícia boa, portanto. Pelos padrões da União Européia, essa relação deve ser de no máximo 60%. O Brasil estaria dentro. Mas para países emergentes que não estão abrigados sob um escudo como o da UE, entende-se que a relação dívida/PIB não deve, por prudência, ultrapassar os 40% do PIB. É possível, sim. Entre os principais emergentes, o Brasil só ganha nesse quesito de Índia (62%) e Turquia (85%). Os demais estão abaixo e em geral bem abaixo. Por exemplo: México (24%), China (13%), África do Sul (38%), Rússia (34%), Chile (14%). Todos têm risco país inferior.
Resumo dessa ópera: o Brasil avançou bem no ano passado, mas ainda tem o que fazer.
E como reduzir mais esse endividamento? Obviamente, uma maneira é aumentar o superávit primário, fazer mais economia no gasto público e pagar mais juros. O ideal seria mesmo que o superávit matasse toda a conta de juros, mas para isso o setor público precisaria ? a valores do ano passado ? cortar gastos e/ou aumentar impostos no valor de R$ 47 bilhões. É dinheiro.
De todo modo, muita gente boa sustenta que um superávit primário de 5%, por exemplo, com a economia crescendo, já estaria de bom tamanho. E nem é tão difícil. Foram 4,6% no ano passado, com ?serenidade?, como disse o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, ao anunciar os números. A Turquia, que deve mais que a gente, comprometeu-se com 6,5% em acordo com o FMI.
Mas aqui entra o outro lado da história, os juros. Quanto maior a taxa básica de juros, maior a despesa do setor público, grande devedor e que se financia àquela taxa.
A dívida líquida do setor público fechou o ano passado com R$ 957 bilhões. Coloque 0,5% nisso e dá uma despesa de R$ 4,7 bilhões, se esse o,5% for mantido um ano inteiro, é claro.
De onde muita gente deduz: uma forte redução na taxa básica de juros, dos atuais 18,25% ao ano para, digamos, 13,25%, já permitiria um corte na despesa de juros de uns R$ 47 bilhões (o que faltou no ano passado) sem corte de gasto público nem aumento de impostos.
Moleza, não?
Seria, se houvesse a certeza de que, primeiro, os investidores que emprestam para o governo continuariam comprando os papéis àquela taxa menor e, segundo, que não haveria uma forte escalada da inflação. Não existe essa certeza. Aliás, é muito mais provável que faltassem investidores e sobrasse inflação.
Nelson Rodrigues dizia que subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de anos. A economia brasileira não ficou encalacrada assim de uma hora para outra. Foram anos de estragos meticulosamente praticados.
Logo, não se conserta de uma hora para outro, nem com uma tacada. É preciso fazer um monte de coisas certas ao mesmo tempo, por muito tempo.
Dureza. Publicado em O Estado de S.Paulo , 31, janeiro, 2005