INSEGURANÇA JURÍDICA

. Podia, mas talvez não pudesse. E daí pôde A cobrança de contribuição previdenciária dos pensionistas e servidores públicos inativos havia sido aprovada duas vezes pelo Congresso Nacional, sendo a segunda, no ano passado, na forma de emenda constitucional, o mais alto grau de legislação. A medida havia sido proposta por dois governos (FHC e Lula) de origens e maiorias obviamente diferentes. Parecia, portanto, uma sólida decisão nacional. Amparadas nisso, a administração federal e diversas estaduais já estavam cobrando a contribuição, com alíquotas diversas. Enfim, parecia correto dizer: essa lei pegou. Mas foi apenas no último 18 de março, em decisão apertada, sete votos a quatro, que o Supremo Tribunal Federal confirmou a cobrança, considerando-a constitucional. E mesmo assim, o STF, a mais alta corte do país, determinou que se cobre apenas das aposentadorias e pensões superiores a R$ 2.508,72. Como o governo federal e os estaduais vinham cobrando de valores inferiores, todos terão que devolver algum dinheiro. Ou seja, o STF disse que a lei pegou, mas para menos. De todo modo, foi um avanço. Até então, persistia uma enorme insegurança jurídica, que se ampliava em instabilidade política e econômica. Política, porque havia a possibilidade de conflito entre poderes, já que a cobrança da contribuição era uma decisão do Executivo – como parte da reforma da Previdência – tendo obtido o apoio de governos estaduais e, mais importante, a maioria qualificada de dois terços da Câmara dos Deputados e do Senado, em dois turnos de votação. Por outro lado, a cobrança da contribuição era peça essencial da reforma da Previdência, não apenas porque criava uma receita adicional em um sistema deficitário, mas porque alterava um conceito de direito adquirido que, tomado a rigor, impediria qualquer mudança no padrão de gastos públicos. Por exemplo: a reforma previdenciária estabeleceu um teto para os vencimentos dos servidores públicos, o maior salário de um ministro do STF, hoje de R$ 19.100,00. Muitos funcionários ativos e inativos ganham mais do que isso e estão nos tribunais pedindo que se reconheça seu direito adquirido aos vencimentos superiores. Igualmente, se argumentava que os aposentados não poderiam sofrer desconto previdenciário pois tinham direito adquirido à isenção. Os funcionários que ganham acima do teto já estão sendo descontados, mas têm recorrido, e vencido, nos diversos tribunais. Se o STF tivesse mantido a tese do direito adquirido, e vetado a contribuição dos inativos, certamente o teto salarial também estaria condenado. Agora, a tendência é pela manutenção, garantindo-se, pois, a base para as reformas previdenciária e administrativa. Tudo considerado, a decisão do STF de 18 de março foi, de fato, um marco histórico. Mudaram-se conceitos. Em 1999, o STF, por unanimidade, havia derrubado a contribuição dos inativos aceitando a tese de que tal medida não poderia ser introduzida por lei ordinária. Ficava no ar a questão: poderia por emenda constitucional? A tendência era um forte não, pois os juízes de então acentuaram a prevalência do direito adquirido à aposentadoria integral obtida no sistema anterior. E insistiram que tal direito individual se sobrepunha ao problema social do déficit da Previdência, financiado por todos os contribuintes, e à flagrante disparidade de tratamento entre os aposentados do setor público e do setor privado. De lá para cá, mudou a composição do tribunal. E foram os chamados “juízes novos”, Nelson Jobim e Gilmar Mendes, nomeados por FHC, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Eros Grau, nomeados por Lula, que deram a nova orientação. A idéia, agora, é que as mudanças nas circunstâncias históricas e as novas “situações institucionais”, como definiu o ministro Gilmar Mendes, se sobrepõem aos direitos adquiridos individuais. Como notaram diversos analistas, juristas, advogados, cientistas políticos e economistas, prevalece agora o interesse social, a visão do conjunto histórico e econômico. Segundo o ministro Jobim, presidente do STF, e óbvio articulador dessa votação, foi uma “decisão jurídico-política”. Apesar disso, prevalece a insegurança jurídica (e econômica) em diversas outras questões essenciais. Só o STF tem mais duas decisões cruciais a tomar nas próximas semanas. Em uma, trata-se de resolver se as Medidas Provisórias que organizam o novo modelo do setor elétrico valem ou não. O ponto jurídico aqui é saber se as MPs tratam ou não de temas regulamentados por emenda constitucional. Se tratam, não valem, esse parece ser o entendimento. O governo Lula já criou vários problemas nessa área, ao rejeitar o modelo anterior e demorar quase dois anos para estabelecer as novas regras. Trata-se de setor em que os investimentos maturam em 20 anos, de modo que tudo depende de regras razoáveis e duradouras. O modelo afinal definido pelo governo Lula é mais para estatizante e desagradou as empresas privadas em muitos aspectos. Pois o risco agora é ficar sem modelo nenhum. Enquanto isso, claro, não há investimentos. A outra decisão que está no pipeline do STF pode causar mais um rombo nas contas públicas. Uma empresa, a Nutriarca Alimentos, reclama créditos de IPI referentes a produtos comprados com alíquota zero. É uma estranha tese – creditar-se de algo que não foi pago – mas teve sustentação jurídica e passou no STF. O governo recorreu e é esse recurso, final, que está em jogo. Se o governo perde de novo, fica devendo ainda incalculáveis bilhões de reais às empresas exportadoras incluídas no mesmo regime fiscal. E isso só no STF. Nos tribunais inferiores correm ações que contestam desde a assinatura mensal das contas telefônicas até o direito das concessionárias cortarem a energia de clientes inadimplentes. Essa insegurança jurídica, parte importante do custo Brasil, decorre de vários problemas. A Constituição é excessivamente ampla e plena de conceitos abertos, como o de direito adquirido, que requerem permanente interpretação. Os governos abusam das MPs, como é claramente o caso da medida que deu status de ministro ao presidente do Banco Central. O correto seria votar, no Congresso, a autonomia do BC. O segundo melhor seria o status especial para o presidente do BC, mas não aplicado em um momento em que o presidente de plantão, Henrique Meirelles, está sob ataque. E a sociedade abusa do direito de demandar, como é o caso da ação do deputado José Carlos Aleluia, do PFL, contra a MP do Banco Central. Agora, se o status de ministro cair nos tribunais, temos uma crise política e econômica, saída do nada. Tudo somado, temos um judiciário congestionado e um risco Brasil elevado. A boa notícia está nas mais recentes decisões do STF e a consciência crescente de que temos um problema nas leis e nos tribunais. Escrito para a revista Exame, edição 825, data de capa 01/09/2004

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