. Atrasos por ideologia
Na entrevista ao Fantástico de quase quatro anos atrás (17 de agosto de 2003), o presidente Lula saiu-se com esta: ?Transgênicos, por exemplo, já fui politicamente muito contrário; hoje, cientificamente, tenho dúvidas".
A polêmica naquele momento girava em torno da legalização da safra de soja transgênica plantada no Rio Grande do Sul, afinal resolvida. A polêmica, entretanto, permanece, agora em torno da autorização para outras variedades de transgênicos, como as de milho, em debate na CTNbio (a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). E segue nos mesmos termos colocados por Lula, entre a política e a ciência.
Mas como pode ser política? Transgênicos (ou alimentos geneticamente modificados, na sigla GM) constituem uma questão científica. O ponto central é avaliar a qualidade dos GM e saber se prejudicam ou não o homem e/ou a natureza. Trata-se de biotecnologia. Mas se não é política, a questão pode ser politizada ? e é justamente o que faz o pessoal contrário aos transgênicos, como confirma a confissão de Lula de anos atrás. A oposição aos GM tornou-se uma posição de esquerda. No campo científico, o pessoal do contra perde feio. Não há cientista ou instituição de peso e reconhecimento internacional que se oponha aos transgênicos com argumentos científicos. Todos reconhecem que, como qualquer tecnologia nova, esta também traz riscos. Mas, como se diz, é como um avião novo que acaba de sair da linha de montagem e vai voar pela primeira vez. Tem risco de cair? Tem. Mas a ciência, tecnologia e experiência que se acumulam naquele aparelho sugerem que a maior probabilidade, disparada, é que decole sem problemas. Assim com os transgênicos. Passam em todos os testes de laboratório e de campo e não aconteceu nada de errado nos países que os utilizam há anos. Além disso, reduzem a necessidade de pesticidas e agrotóxicos, são mais produtivos e, pois, mais rentáveis, razão pela qual exercem irresitível atração entre os agricultores. Mas, diz o pessoal contrário, é preciso respeitar o princípio da precaução e dar um tempo ? mais ou menos como deixar o avião no hangar para ver o que acontece. Na verdade, trata-se de uma posição política contrária ao agronegócio moderno ? capitalista e globalizado. Além disso, ocorre que o primeiro GM comercial no mundo foi a famosa soja da Monsanto, multinacional americana, que foi agressiva, truculenta mesmo, na campanha para viabilizar seu produto. Fez lobby pesado em Washington, cooptou autoridades americanas para ?vender? o produto em outros países, entrou em conflito com os produtores de sementes convencionais e de pesticidas e agrotóxicos. Hoje, porém, há pesquisas de transgênicos por toda parte, inclusive no Brasil, onde a Embrapa estuda, por exemplo, variedades de cana, feijão e outros produtos resistentes à seca. Os primeiros dados dessas pesquisas são sensacionais: plantas que permanecem perfeitas depois de vários dias sem uma gota de água, de interesse óbvio para o Brasil nordestino. Mas se Lula declarava-se ?cientificamente em dúvida? em 2003 (estaria já convencido hoje?), seus companheiros continuam politicamente contra e tentando bloquear pesquisas e comercialização. Já há prejuízos para o país. Tome-se o caso do milho. Como os EUA estão usando boa parte do milho (transgênico) para produzir etanol, o preço do produto sobe e encarece diretamente os alimentos derivados, assim como as cotações de aves, alimentadas com ração à base de milho. O Brasil tem boa oportunidade de aumentar sua safra de milho ? é a variedade transgênica é mais eficiente e lucrativa. Outro prejuízo: o Brasil lidera a tecnologia do álcool de cana, mas precisa avançar. E há variedades dependendo de autorização da CNTbio. Em consequência dessa contradição inerente ao governo Lula ? tem gente a favor e contra os transgênicos ? a política pública para isso acaba sendo a paralisia. No esforço de conciliar posições, se chega ao impasse, como a regra que inviabilizava decisões da CNTbio, ora em mudança no Congresso. Parece que, afinal, as mudanças vão privilegiar o aspecto científico e o simples bom senso. Mas atrasa. Como no caso de outras paralisias por ideologia. Naquele mesmo agosto de 2003, Lula dizia à revista Veja: ?Como é que nós vamos fazer saneamento básico nas regiões metropolitanas deste país sem atrair investimentos de fora? Não cabe mais aquele discurso ideológico de que saneamento básico é obra do governo federal e responsabilidade do governo estadual e do prefeito. Esse discurso seria maravilhoso se tivéssemos dinheiro para fazer. Não adianta fazer um bom discurso ideológico e o povo continuar pisando em esgoto a céu aberto e bebendo água não tratada?. A nova lei de saneamento saiu só agora, e ainda assim tem aspectos não esclarecidos, que dificultam tanto investimentos privados quanto públicos. Publicado em O Globo, 22 de março de 2007