GOVERNO LULA – O VELHO E O NOVO

. Difícil travessia O conflito entre o velho e o novo PT entrava ação do governo   O Ministério da Fazenda mantém a rota segura. Nos próximos dias, vai divulgar seu programa de trabalho, uma mistura de análise da situação com medidas práticas a serem desenvolvidas rapidamente. Entre estas, um elenco de reformas microeconômicas destinadas a baratear o custo do crédito, independentemente do taxa básica de juros – que, por sinal, permanecerá elevada. A idéia central das micro-reformas é reduzir a extrema proteção que as leis e o Judiciário concedem ao devedor inadimplente. Para os juízes, especialmente os mais jovens, que são muitos, essa proteção tem uma função social, a de defender os mais fracos diante dos mais fortes, os bancos no caso. Do ponto de vista econômico, entretanto, essa proteção a indivíduos gera um custo para a sociedade, na forma de taxas de juros mais elevadas e crédito escasso tanto para empresas quanto para pessoas físicas. A dificuldade de cobrança aumenta o risco da operação – e isso, em qualquer país, significa simplesmente mais juros e menos dinheiro para emprestar. O governo FHC avançou alguma coisa nesse quesito, como a introdução da Cédula de Crédito Bancário (mais fácil de cobrar), a extensão do conceito de alienação fiduciária, já vigente para automóveis e imóveis, para todos os tipos de crédito, e a especificação em lei de que é permitido o anatocismo, cobrança de juros sobre juros – mas tudo isso permanece na forma de Medida Provisória. Não transformadas em lei, essas novidades não ganharam a confiança das instituições financeiras. Pois a idéia agora é consagrar essas medidas em legislação regular, ao lado de outras providências do mesmo estilo, que parecem mixaria, micro demais, mas levam a mudanças importantes no ambiente de negócios. É o caso, por exemplo, do projeto da nova lei de falências. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, andou conversando desses assuntos com diretores da Federação dos Bancos, a Febraban, e o pessoal saiu bastante animado. Lisboa é o organizador da Agenda Perdida, um magnífico documento sobre as condições de retomada do crescimento no Brasil, escrito em setembro do ano passado, sob inspiração do economista José Alexandre Scheinkman. O texto, de teor liberal clássico,pode ser encontrado no site do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, www.iets.org.br. Parece inspirar parte dos planos do Ministério da Fazenda. Além disso, o programa de trabalho da Fazenda trará os temas referentes ao ajuste fiscal, incluindo as reformas estruturais macroeconômicas, ao combate à inflação e à retomada do crescimento sustentado. Para dizer a verdade, nada disso surpreende mais. O ministro Antonio Palocci já consolidou sua posição e mantém rigorosa coerência. A surpresa hoje seria o contrário, se Palocci caísse em alguma medida populista. A questão é o andamento do resto do governo, ali onde convivem o antigo e o novo do PT. Há questões políticas, como o encaminhamento das reformas previdenciária e tributária, enormes contenciosos estruturais, como os do setor elétrico e de saneamento, e uma série variada de pequenos, mas complicados, problemas. Um destes, por exemplo, é o caso do Banco do Estado de Santa Catarina, BESC, que foi federalizado no curso da negociação da dívida do governo estadual. O banco está no programa de privatização do Banco Central, com mais outras três instituições estaduais, BEM, do Maranhão, BEP, do Piauí, e BEC, do Ceará. O caso do BESC está mais complicado porque durante a campanha Luís Inácio Lula da Silva prometeu que o banco continuaria público, o que era, aliás, uma bandeira do PT local. Pois o partido reivindicou a presidência do BESC para seu líder, Eurides Luiz Mescolotto. Levou, com o apoio do governador Luiz Henrique, do PMDB, outro que diz ter a palavra de Lula para não apenas manter o banco longe da privatização como para fortalecê-lo. Enquanto isso, o BC diz que a retomada da privatização dos quatro bancos foi determinada pelo ministro Palocci. No caso das reformas previdenciária e tributária, as declarações e contra-declarações das autoridades do governo Lula refletem dúvidas de encaminhamento. Esses assuntos foram exaustivamente debatidos nos últimos anos, de modo que, exceto o improvável aparecimento de alguma idéia genial, todo mundo sabe qual é o problema, quais as soluções e quais os obstáculos políticos. Portanto, trata-se de decidir, escolher um caminho e levar a proposta ao Congresso Nacional. Aliás, foi o que pediram diversas lideranças, inclusive da base governista, logo após a sessão de abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, na segunda, 17, quando o presidente Lula fez novo veemente apelo pelas reformas. Mas não. Lula, que aliás nunca declinou publicamente suas preferências, quer passar antes pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Conforme o presidente disse no Congresso, o Conselho vai assessorá-lo na definição da agenda de reformas e na construção do pacto social. Claramente, o presidente espera que, via Conselho e suas repercussões na mídia e na sociedade, alcance se não um consenso pelo menos uma redução das resistências a tais reformas, especialmente dentro de seu próprio partido. Aí então as enviaria ao Congresso. O problema é o tempo. O ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, e presidente da Câmara, João Paulo, sustentam, por exemplo, que a reforma previdenciária pode perfeitamente ser votada neste ano para entrar em vigor já em 2004. Serão necessárias emendas constitucionais, com seu complexo ritual de votações, maioria de dois terços, duas votações em cada casa do Congresso. Considerando-se que o governo do PT pretende fazer tramitar pelo menos mais a reforma tributária, haja energia e capacidade de articulação. Além disso, há o tempo político. O presidente Lula tem um enorme capital de popularidade. Precisa utilizá-lo rapidamente antes que o crescimento lento, as taxas de juros elevadas e o desemprego persistente – que estarão entre nós pelos próximos meses – comecem a minar seus votos. E, finalmente, há os enormes contenciosos estruturais, especialmente os de energia elétrica e saneamento, dois setores que obviamente não estão funcionando. No governo anterior, definiu-se que, dada a crise financeira do Estado e as restrições duradouras de gasto público, seria preciso caminhar na direção da privatização. Por diversos motivos políticos, não se caminhou, de modo que esses setores ficaram sem os investimentos públicos, por falta de dinheiro, e os privados, por falta de regulamentação. Nos dois setores, em particular, mas em todo o resto do governo, a administração petista não pretende privatizar mais nada. Ao contrário, acha que o problema foi de excesso de privatizações. Na mensagem ao Congresso, cada capítulo escrito pelo Ministério da área, o presidente Lula, depois da defesa da nova política econômica e das reformas, retoma modelos propostos na campanha que têm um sentido claro: crítica às privatizações, redução do poder das agências reguladoras, aumento do controle do governo federal e, sobretudo, mais investimentos estatais, ainda que se faça sempre a referência de praxe a parcerias com o setor privado. Tudo isso foi pensado quando, no PT, valia a filosofia segundo a qual o ajuste fiscal, dito neoliberal, seria abandonado. Vã filosofia, como se verifica hoje, depois do superávit primário de 4,25% do PIB, dos cortes no orçamento federal impostos pela área econômica e da explicação de que esse tipo de aperto é para muitos e muitos anos. Eis aí, a travessia parece completa nessa área econômica, mas em muitas outras, tão importantes, ainda se está a meio caminho entre o velho PT e o PT atualizado. E na indefinição, não sai negócio, nem público, nem privado. Pode-se dizer: mas são apenas 50 dias. É verdade. Mas há muita coisa que precisa mudar e alguns ainda nem perceberam as mudanças já ocorridas. Publicado na revista Exame, edição 786, data de capa 26/02/2003

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