GOVERNO CONTINUA A PÃO E ÁGUA

. Vã esperança Não é apenas no governo Lula que ainda se encontra gente acreditando no aumento dos investimentos públicos no próximo ano. A mesma expectativa aparece em setores privados diretamente interessados (pessoal da construção civil, por exemplo, que espera encomendas de obras de saneamento, estradas etc). Além disso, nos meios econômicos em geral e especialmente no ambiente político, ainda é bastante disseminada a percepção de que o investimento público pode voltar a ser alavanca do crescimento. Vã esperança. O arrocho nas contas públicas não é uma emergência deste ano, um sacrifício imposto pela “herança maldita”. O aperto é para sempre, por um simples e bom motivo: o governo já arrecada demais, gasta demais e deve demais. Para elevar o gasto público – quer seja para aumentar substancialmente o salário mínimo, quer seja para investir em saneamento ou energia elétrica – seria preciso arrecadar mais impostos (mas a capacidade da sociedade de pagar está esgotada) ou tomar mais dívida, não recomendável dado o tamanho exagerado do endividamento atual. Mas pode-se reduzir o superávit primário, é a resposta que se ouve em meios públicos e privados. Superávit primário é, resumindo, a economia que o governo faz para pagar juros. Portanto, é o que sobra da conta receita total menos despesas não financeiras. Nestas incluem-se investimentos, gastos com pessoal e aqueles destinados ao funcionamento da máquina administrativa. Desde o início do governo Lula, o setor público (União, Estados e Municípios, mais suas estatais) está comprometido com um superávit primário de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). Deve dar algo entre R$ 65 e R$ 70 bilhões. É dinheiro. O argumento puro da esquerda diz o seguinte: absurdo pagar juros aos banqueiros quando há tanta coisa social por fazer com esse dinheiro, de reforma agrária a bolsa família. Portanto, basta dar o calote nos juros e sobra dinheiro. Mas sobra só no primeiro momento. Caloteiro, o governo perde o crédito na praça nacional e internacional. Os investidores, no vencimento dos títulos que já têm em carteira (e que montam a mais de R$ 700 bilhões) vão exigir o resgate, já que não recebem os juros. O governo não tem o dinheiro para pagar, de modo que vai ampliar o calote. Danem-se esses investidores, banqueiros especuladores da dívida, é o argumento à esquerda. Bom, digamos que os grandes bancos brasileiros e estrangeiros tenham como se virar. Mas toda a classe média brasileira e todas as empresas, de micro a grandes, têm sua poupança e seu caixa em fundos de investimento financeiros, lastreados nos títulos do governo. O calote, portanto, atinge inocentes. Mas quem está falando de calote? Queremos apenas “flexibilizar” o superávit primário – é o que se ouve por aí no governo e fora dele. Há duas possibilidades: fazer um superávit menor do que os 4,25% do PIB (uma redução de apenas um ponto livraria R$ 16 bilhões, uma boa grana) ou eliminar da conta de gastos algumas rubricas. Por exemplo, investimento em saneamento não conta, investimentos das estatais rentáveis também não. Qualquer que seja a alternativa escolhida – e se não houver aumento de imposto – o resultado é o mesmo: sobra menos dinheiro para pagar juros. Os juros não pagos terão que ser refinanciados e assim voltamos à origem do problema: cresce o endividamento público, hoje na casa, perigosa, dos 57% do PIB. Ora, esse endividamento é o principal fator de vulnerabilidade da economia brasileira. Há outros, como a baixa relação entre exportações e dívida externa (precisamos de quase três anos de exportação para “pagar” a dívida e a relação ideal seria em torno de um). Mas o endividamento público total (interno e externo) é o principal fator de análise do risco Brasil – e por isso o governo elegeu como objetivo central a redução consistente dessa dívida. É isso que determina o tamanho do superávit primário, não a vontade do governo ou a exigência do FMI. Define-se um número tal que leve a uma firme redução da relação dívida pública/PIB. Portanto, quanto maior o endividamento e a conta de juros, maior o superávit primário necessário. Isso vale para todos os países. Costuma-se dizer por aqui que só Brasil faz superávits tão elevados, isso porque o FMI nos trata mal ou porque o governo anterior era mole diante do FMI. Não é assim. O México já fez superávits de 4,8% do PIB, quando sua dívida total equivalia a 45,1% do Produto. A Rússia fez superávits ainda maiores (4,6% em 2000, 5,9% no ano seguinte, quando a dívida ultrapassava os 60% do PIB). Hoje, o endividamento público mexicano está em confortáveis 22,7% do PIB, mas o governo continua fazendo superávit primário, ainda que menor (2,5%). Idem para a Rússia: dívida em 34%, superávit de 2,3%. Resumo da ópera: o superávit de 4,25% fixado pelo governo Lula para os próximos quatro anos baseia-se em parâmetros macroeconômicos que prevêem a redução do elevado endividamento. Somente será possível alterar os parâmetros e assim “flexibilizar” o superávit quando a dívida tiver caído substancialmente, com o aconteceu, por exemplo, com México e Rússia. Isso pode ser rápido: no México, a dívida caiu 10 pontos percentuais em cinco anos. “Rápido”, é claro, quando se considera a vida de um país. No horizonte do governo Lula, significa que o arrocho no gasto público alcançará todo o mandato inicial e boa parte do segundo, se houver reeleição. O acordo a ser firmado com o FMI mantém rigorosamente esses parâmetros. Pode haver alguma perfumaria aqui e ali, como a “autorização” para se investir em saneamento o excesso de superávit deste ano (mas não foi economia além da conta?), alguma liberdade para alguma estatal rica, mas o setor público como um todo continuará com a obrigação de economizar 4,25% do PIB para pagar juros. O presidente Lula, seus ministros e colaboradores vão dizer que o acordo com o FMI é diferente, que desta vez o governo foi duro com os caras de Washington e arrancou garantias de crescimento. Tudo firula. Tem superávit primário de 4,25% para reduzir a dívida? Se tem, é acordo igualzinho aos outros, até mais rigoroso, já que o governo anterior fazia superávit menor, por incapacidade política. Logo, e esta é uma conclusão definitiva, não haverá recursos para investimentos públicos na escala sonhada por muita gente do governo Lula e fora dele. Podem sobrar alguns trocados. O crescimento só virá com investimento privado. E só virá quando o governo como um todo, incluindo a base parlamentar, abandonar a vã esperança do retorno do Estado Grande e criar as condições para que os investidores privados, nacionais e estrangeiros, acreditem que vale a pena apostar no Brasil. Melhor substituir essa discussão inútil sobre o FMI e o superávit pela definição rápida dos modelos regulatórios para o investimento privado em energia, saneamento, telecomunicações, estradas, ferrovias e portos. Publicado em O Estado de S.Paulo, 24/novembro/2003

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