GOVERNO ACERTA E POR ISSO PODE ERRAR

. Vento a favor O Brasil conseguiu superar a crise e reunir as condiç~es para crescer em 2004. Paradoxalmente, isso pode ser um problema O cenário político-econômico nesta entrada de ano está assim: tudo que não depende do governo vai bem. O destaque, claro, fica para a conjuntura internacional, um presente dos deuses para o Brasil. Raras vezes o mundo terá sido tão favorável. Tanto que o governo iniciou a semana oferecendo ao mercado internacional bônus de 30 anos. A última vez que havia conseguido prazo tão dilatado foi em 2000, aliás, o último ano bom para a economia brasileira, quando o mundo também ajudava. Mas e o que depende do governo aqui dentro? Aí varia. A política econômica continua na sua firme toada e, mais importante, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, sustenta que seu objetivo é avançar pelo mesmo caminho, fazer mais do mesmo. Essa política multiplica internamente os efeitos positivos do cenário externo. Resumo da ópera: o mundo cresce sem inflação, na onda do transatlântico americano, os investidores estão animados, sobram capitais e clientes para as empresas brasileiras. A recuperação da atividade interna ainda é lenta e moderada, aquém das expectativas ou esperanças, mas não se vê nenhum obstáculo ao seu progresso ao longo deste ano. Exceto equívocos do governo Lula. Não é pequena a chance de erros. Se o ministro Palocci quer manter o rumo, não falta quem entenda justamente o contrário, que é hora de aproveitar a boa conjuntura para fazer duas ou três coisas de que o mercado não gostaria se não estivesse de tão bom humor. Por exemplo, se o risco Brasil está nas redondezas dos 400 pontos – o mais baixo desde 1997 – por que se preocupar com a autonomia legal do Banco Central? Ou com a autonomia das demais agências reguladoras? A agenda microeconômica? A reforma trabalhista? Melhor deixar tudo isso de lado e concentrar esforços no aumento do gasto público para gerar crescimento e emprego, tal é a percepção que emerge dos discursos do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É impressionante a freqüência com que o presidente e muitos de seus ministros e colaboradores se referem ao fato de que o orçamento 2004 é o primeiro efetivamente seu, querendo isso dizer que agora há dinheiro para gastar. Essa impressão é falsa, se forem mantidos os parâmetros fiscais fixados no próprio orçamento, na lei de diretrizes orçamentárias e no acordo com o Fundo Monetário Internacional: superávit primário (receita menos despesas excluídos os pagamentos de juros) de 4,5% do PIB e limites estreitos ao endividamento dos governos federal, estaduais e municipais. Muitas vozes no governo petista continuam reclamando o relaxamento dessa austeridade, mas tudo indica que ela será mantida pela simples e boa razão de que o superávit primário é ponto de honra. No tempo do bom humor, tudo é perdoável, menos não fazer o saldo para pagar juros. Tudo considerado, não admira que o governo pareça sempre oscilando um tanto ao mar, um tanto à terra. Lula celebra a estabilidade alcançada em 2003, jura preservá-la, mas garante que o governo voltará aos negócios em 2004. Não fecha. Palocci e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, dizem que o projeto de lei da autonomia do BC é prioridade e que deve constar da agência legislativa deste ano. O ministro da Casa Civil, José Dirceu, dando razão a lideranças parlamentares do PT, diz que não, que a agenda não inclui esse ponto polêmico. A coisa repercute mal – Meirelles estava, como convidado, numa reunião dos dez principais BCs do mundo – e o presidente Lula manda dizer que todos estão certos. Ou seja, está na agenda, mas pode não estar. O governo garante que o projeto de lei sobre as agências reguladoras tem o objetivo de garantir sua autonomia. Mas recorre a uma interpretação forçada da atual legislação para colocar como presidente da Agência Nacional de Telecomunicações um líder sindical, Pedro Jaime Ziller, conhecido até então por suas posições contrárias à privatização e ao modelo por ela produzido. Mas tudo bem, garantem todos, incluído o próprio Ziller: ele não pensa mais assim e está lá para cumprir contratos, exatamente como fazia seu antecessor, Luiz Guilherme Schymura. Mas se é assim, não havia motivo nenhum para a mudança, a não ser, talvez, a de acomodar um companheiro em um bom posto. Aliás, parece ser esse o espírito da reforma ministerial, o fato político mais importante em andamento. É preciso acomodar o PMDB com pelo menos duas vagas das grandes e talvez conceder uma ao PP. Mas isso sem largar os velhos companheiros na estrada, o que não é simples. Dos 34 ministros – número inchado justamente para acomodar o pessoal – nada menos que 20 são petistas da gema. Há apenas sete dos partidos aliados – cujas vagas serão preservadas – e sete técnicos, que, em tese, podem ser dispensados, mas na prática não. Entre eles encontram-se as ilhas de eficiência do governo, como Luis Fernando Furlan no Desenvolvimento e Roberto Rodrigues na Agricultura. O resultado é que um ministério pouco eficiente, e freqüentemente confuso com a mistura de atribuições, pode até piorar, com a abertura de ainda mais vagas ou a divisão de áreas que vão bem. Na verdade, este é o resultado mais provável, pois durante todas as negociações raramente se falou em mudar para dar eficiência ao conjunto do governo ou para dar a todas as pastas a consistência da política econômica. Tudo, portanto, leva à mesma conclusão: o governo Lula está gastando por conta dos bons resultados da política econômica e da incrivelmente favorável conjuntura externa. Como esse capital é abundante, o resultado é uma boa notícia de médio prazo: os atuais equívocos e as bobagens do governo não conseguirão atrapalhar o processo de recuperação da economia. Um exemplo ilustra esse ponto: para um país que precisa aumentar suas exportações, os acordos de livre comércio e, sobretudo, os esforços para abrir mercado nos EUA, onde se encontram os consumidores mais gastadores do mundo, deveria ser uma política estratégica. Em vez disso, a diplomacia brasileira parece se mover com o objetivo de trombar com os americanos, além de não ter pressa nenhuma em fechar acordos de livre comércio com os países ricos. Mesmo assim, o saldo nas exportações segue aumentando porque a economia americana cresce fortemente, assim como alguns outros parceiros estratégicos, como a China e os demais asiáticos, e porque a Argentina voltou às compras. O mercado é comprador, o vendedor pode esnobar a freguesia. Isso esconde o erro que é perder oportunidades de ampliar o comércio externo. Do mesmo modo, o risco Brasil a 400 pontos esconde a necessidade de se aprovar a lei de autonomia do BC. Os 400 pontos são quase um milagre diante do que se tinha há apenas um ano, mas ainda formam um risco que é o dobro do México. Aprovar a autonomia do BC, assim como das demais agências, neste momento de extremo bom humor dos mercados, multiplicaria os efeitos positivos dessas medidas. Mais uma vez tem razão o ministro Palocci quando diz que este é o momento de avançar na agenda, na mesma direção. Mas a tentação de relaxar é enorme, coisa, aliás, que ocorre com qualquer governo que se vê livre de uma crise aguda. Mas relaxar agora é perder oportunidades, ainda que isso somente será visível a olho nu quando o bom momento – e as boas oportunidades – tiverem passado. Em resumo, o governo Lula está entre, de um lado, um bom e limitado momento, e, de outro, um duradouro período de ouro. Alguns companheiros dizem a Lula: ligue o piloto automático e vamos com segurança nesse céu de brigadeiro. Outros dizem: vai cara, dá um rasante na Casa Branca. Publicado na revista Exame, edição 808, data de capa 21 de janeiro de 2004

Deixe um comentário