GOVERNANDO E MUDANDO

. Mudando em pleno vôo O adiamento da unificação dos programas sociais – que estava marcado para a última sexta e deveria ser um lance forte do governo Lula – foi determinado por problemas políticos (necessidade de mais integração com os governadores) e técnicos (pontos ainda não amarrados) conforme as explicações de integrantes do próprio governo. Mas pode ter havido algo mais que isso. Há um antecedente interessante. Unificados, os programas sociais ficariam todos sob o comando de uma secretaria especial, vinculada diretamente à Presidência da República, sob o comando da socióloga Ana Fonseca e do economista Ricardo Henriques. Ana Fonseca, petista, respeitada entre o pessoal do setor, ex-coordenadora de programas da prefeitura de São Paulo, havia trabalhado no escritório de transição. Mas não foi para o governo porque, segundo pessoas que trabalharam com ela, decepcionou-se com o modelo e o andamento dado aos programas sociais, inclusive e especialmente com o Fome Zero. Conforme informações obtidas por este coluna, Ana Fonseca acabou sendo resgatada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, com o qual passou a trabalhar cerca de dois ou três meses atrás. Palocci parecia inquieto com o rumo tomado pela área social, tanto no que se refere às questões (confusões) administrativas quanto de concepção. Aparentemente, essa inquietação tomou conta também do “núcleo duro” do governo Lula e do próprio presidente, que passaram a “construir” – como gostam de dizer – a alternativa da supersecretaria social. Trata-se de uma mudança radical na forma e no conteúdo. Por exemplo, o novo modelo simplesmente sepulta o Fome Zero, que terá durado muito pouco como a “cara” do novo governo. Muda a concepção. Na atual versão do Fome Zero, a família recebe um cartão de R$ 50 por mês e precisa provar com algum tipo de recibo que gastou o dinheiro na compra de alimentos. Na ocasião do lançamento, no início deste ano, muitos especialistas criticaram esse modelo, considerado ultrapassado. Sustentavam que não deveria haver a exigência de recibo, pois as famílias sempre sabem como gastar melhor a renda recebida. Mas o ministro José Graziano sustentou a tese do cartão x prova de gasto com alimentos e ganhou a parada. Por pouco tempo. Com o Bolsa Família, nome do programa unificado, sob o comando de Ana Fonseca, as famílias mais pobres receberão um piso de R$ 50 para gastar como bem entendem, sem necessidade de comprovação. Haverá parcelas acima disso, vinculadas ao número de filhos, que precisam estar na escola. Além dessa mudança de conceito, a supersecretaria altera a administração. Ao assumir todos os programas, inclusive e sobretudo o comando do orçamento de pelo menos R$ 4 bilhões/ano, ela simplesmente elimina ministérios e, pois, seus ministros. Perdem função Graziano e a ministra da Assistência Social, Benedita da Silva. Cristovam Buarque, da Educação, perde o Bolsa-Escola. Em resumo, trata-se de uma forte mudança de rumos, o que certamente tem custos políticos. O adiamento, segundo versão oficial, deve-se à necessidade de promover maior integração dos governadores. Faz sentido. Muitos governadores têm seus programas de distribuição de renda e seria lógico também unificá-los, já que o propósito é justamente concentrar esforços e recursos. Também faz sentido a informação segundo a qual o presidente Lula não quer criar arestas com os governadores neste momento em que eles são tão importantes na votação das reformas. Mas o fato é que a integração dos programas estaduais, que são infinitamente menores, poderia ser feita com o Bolsa Família já em andamento. Seria até mais simples. Nem havia notícias de graves restrições dos governadores. Enfim, não é absurdo supor que teria havido reações dos setores derrotados, de modo que o presidente talvez precisasse de mais tempo para saber o que fazer com os ministros que perdem função. De todo modo, o episódio se inclui na série das importantes mudanças que o governo opera em pleno vôo. Nesse ritmo, dentro de pouco tempo, o governo Lula será bem diferente daquele de 1o. de janeiro, no que se refere a nomes e idéias. Não é um processo pacífico. Deixa companheiros pelo caminho e passa por dificuldades administrativas graves, sobretudo na área social, que deveria ser a cara do governo. Um problema que se aproxima está no Ministério da Educação. Especialistas que trabalharam no governo anterior dizem que a distribuição de livros didáticos já está perdida. Neste ano, o Ministério deve fazer uma compra grande – livros para os alunos de 1a. à 4a. série, que precisariam estar nas escolas em janeiro próximo. A distribuição é complicadíssima, tipo operação de guerra, cuja execução precisa começar com grande antecedência. Como o Ministério atrasou os contratos de compra dos livros, as editoras, obviamente, não produziram nada. Só começarão a rodar os livros depois de garantida a venda. E só então começará a distribuição por todo o país. Não vai dar tempo, assegura quem já trabalhou nisso. Confirmado o atraso, será um retrocesso enorme em relação ao governo FHC, que tem como um de seus êxitos sociais justamente a entrega dos livros a tempo, pela primeira vez na história do Ministério da Educação. Outra mudança em curso tem a ver com os transgênicos. O presidente Lula anunciou para hoje, segunda, uma decisão sobre o cultivo de soja transgênica no Rio Grande do Sul. E só há uma decisão razoável, a que autoriza o plantio dessa soja geneticamente modificada (GM). É simples: os agricultores gaúchos plantam esse produto há seis anos, estão muito satisfeitos com a produtividade, garantem que não enfrentam qualquer problema ambiental, já têm as sementes necessárias para a próxima safra e informaram que vão plantar de novo neste ano qualquer que seja a decisão de Brasília. Proibir a soja transgênica será criar um de dois problemas: a ruína desse setor no R.G.do Sul, se houver fiscalização e o cultivo for de fato bloqueado; ou a edição de mais uma lei a ser descaradamente desrespeitada. Mas se autorizar o plantio, atendendo inclusive pequenos agricultores e o pessoal da agricultura familiar, ligados ao PT, Lula estará desautorizando todo um lado de seu governo, a começar pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a turma política e ideologicamente contra os GM. Semanas atrás, na entrevista ao Fantástico, Lula disse que havia sido “politicamente muito contrário aos GM”, mas que agora estava “cientificamente em dúvida”. Foi um comentário corajoso, indicando sua capacidade e disposição de aceitar novos argumentos e mudar. Só que nem todos seus companheiros de partido parecem ter a mesma disposição, não pelo menos na mesma velocidade. O resultado é que o governo fica dividido entre tendências antigas e novas, entre o pessoal que se aferra às velhas teses de oposição e aquele que percebe a realidade de ser governo e muda. Com o tempo, a turma da mudança vai emplacando, mas o processo deixa mortos e feridos, além de fracassos de governo. O presidente disse na última sexta, pelo eu porta-voz, André Singer, que não será pautado pela imprensa na reforma ministerial. Tudo bem, mas do jeito que está, há prejuízos para o governo e para o país. Publicado em O Estado de S.Paulo, 22/09/2003

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