FOME ZERO, ACERTOS E EQUÍVOCOS

. Filantropia, entre o público e o privado Quem deposita dinheiro nas contas do Fome Zero certamente age bem como indivíduo. Mas, de um ponto de vista mais amplo, não é a melhor política de assistência aos necessitados. Com isso, há uma espécie de estatização da filantropia e entrega-se à máquina do governo – cuja lentidão tem sido alvo das reclamações do próprio presidente Luis Inácio Lula da Silva – uma atividade que poderia ser mais bem desempenhada por centenas de instituições particulares. Comparados com os americanos, por exemplo, os brasileiros contribuem muito pouco para as obras de caridade e assistência. De uns tempos para cá, é verdade, muitas empresas adotaram os programas chamados de responsabilidade social. Mas, com frequência, é mais uma atitude de marketing, pois o social está na moda, do que verdadeira filantropia, como tem notado o economista Stephen Kanitz, há anos dedicado ao assunto. Exemplo: uma escola de inglês monta um programa social para crianças de uma favela ali perto: ensinar inglês. Ora, quem garante que essa é a principal necessidade daquelas crianças? E assim vai. Empresas de alimentos doando seus próprios produtos, de roupas, idem, sem saber se os outros estão precisando ou querendo. Enquanto isso, existem inúmeras entidades filantrópicas já reconhecidas, com uma extensa lista de bons serviços prestados, de competência testada, e que vivem com dinheiro apertado. É muito mais lógico, se você quer fazer o bem, doar dinheiro a essas entidades, que elas saberão utilizar melhor. Claro, pessoas e empresas também podem doar roupas, alimentos, outros bens e serviços, mas é preciso saber antes do que as entidades efetivamente precisam. A propósito, Kanitz administra o site www.filantropia.org, pelo qual as doações podem ser feitas a 400 entidades selecionadas pela sua competência. Você escolhe a entidade, pode obter informações a respeito dela, e a doação vai direto para a conta bancária da entidade, sem passar por qualquer intermediário. Faz-se tudo pelo site. Em janeiro passado, as doações foram de magros R$ 9.500,00. Na verdade, pode ter sido um pouco mais, pois os doadores só registram a doação se quiserem. Mas não passou muito daquela mixaria. Já nas contas quase secretas do Fome Zero, só no primeiro dia caíram R$ 51 mil. Eis a questão: considerado o tamanho do Fome Zero – na casa dos bilhões de reais – essas pequenas doações representam quase nada. E seu resultado será mais demorado. O dinheiro vai para o caixa único do Fome Zero que, convenhamos, é um programa cambaleante, criticado na teoria e na prática. Na administração, o erro essencial é que dispersa esforços (e recursos) que poderiam ser concentrados em programas já em andamento, o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação. Em vez de se inventar mais um cartão, era obviamente mais simples aumentar o valor dos outros dois que já estavam sendo distribuídos. Está certo que o governo do PT precisava de uma marca forte no social e o Fome Zero é essa marca. Mas a vontade de fazer algo diferente, de mostrar a mudança, acabou resultando numa bola quadrada, que dá mais desgaste do que marketing. Além disso, o Fome Zero tem um viés estatizante equivocado. A idéia de se receber e distribuir alimentos é um erro monumental. Imaginem a sequência: toneladas de alimentos doados nos diversos cantos do país; o governo recolhe tudo em armazéns; dá entrada no almoxarifado; cataloga e divide em lotes; combina os diversos itens (porque não se pode mandar todo o arroz para um lado e todo o feijão para outro); faz os pacotes; traz os caminhões; e redistribui para o público certo pelo país afora. Gente, não vai funcionar nunca. Vai se perder, desviar e roubar alimento, mesmo que alguém tenha a brilhante idéia de criar uma estatal para isso. Mas acontece que muitas entidades querem doar alimentos, sinceramente, de fato envolvidas com o espírito de solidariedade gerado pela onda Lula. Como fazer? Simples, basta procurar um pouco que ali perto do supermercado, do restaurante, da fabricante de alimentos haverá alguma comunidade que precisa. Na dúvida, façam como dona Zilda Arns, da Pastoral da Criança, que atende mensalmente 1,135 milhão de famílias: “Quando temos alimentos, pedimos à Caritas e aos Vicentinhos quer distribuam; se começarmos a fazer isso, o trabalho da Pastoral acaba”. A recomendação vale muito mais para o governo e para o setor privado. Idem para as doações em dinheiro. Sem querer sabotar programas do governo, é preciso tomar cuidado para que não aconteça na área social o mesmo que acontece na economia geral. O governo no Brasil gasta mais do que arrecada, toma muitos impostos da população e ainda toma emprestado para fechar suas contas. Resultado: retira da sociedade um dinheiro que poderia financiar investimentos de empresas privadas e consumo das pessoas. O setor público despoupa e toma poupança privada. Agora, a filantropia pública pode tomar os parcos recursos da filantropia privada. Assim, caro leitor, cara leitora, considere o seguinte: doe também para as entidades filantrópicas que já estão na estrada há muito tempo e saberão o que fazer com o dinheiro. E aqui é preciso tocar em um ponto delicado: a doação para o Fome Zero dá televisão e isso é importante para muitas pessoas. Talvez uma saída fosse o Fome Zero distribuir selos de qualidade para as entidades privadas, que passariam a integrar a rede simbolicamente, cada uma continuando seu serviço específico. Mas o selo permitiria que uma doação para uma determinada entidade fosse recebida pelo ministro ou pelo próprio presidente Lula. Não seria complicado criar eventos e campanhas em torno disso. Ressalte-se: não seria demagogia ou propaganda enganosa. Esse tipo de marketing tem efeito social importante. Pode perfeitamente estimular as pessoas a fazerem mais doações, assim como Lula e seu Fome Zero estimulam extraordinariamente o espírito de solidariedade. Tudo considerado, é possível que o programa público, em vez de tomar recursos das entidades privadas, conduza, ao contrário, a um aumento geral das doações. Finalmente, é curioso observar: pensava-se antes que o governo Lula seria bom no social e fraco na economia. Pois o ministro Antonio Palocci está como uma rocha e o ministro José Graziano balança. Publicado em O Estado de S.Paulo, 17/03/2003

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