EUA, PROTECIONISMO, CRISE DO AÇO

. Por um punhado de votos A crise do aço, desfechada pela aplicação de uma parafernália de restrições à importação de aço nos Estados Unidos, pode se transformar numa guerra comercial global. Esse seria o pior desfecho para essa situação criada pelo presidente George Bush. Mêsmo que se evite isso, a idéia e a prática do livre comércio já foram gravemente feridas. Isso é particularmente ruim para o Brasil neste momento em que se deve iniciar a nova rodada de negociações, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, com vistas à maior liberalização para diversos produtos, inclusive têxteis e agrícolas, setores nos quais é alta a competitividade brasileira. Por isso mesmo, o governo brasileiro acabou vestindo uma saia justa. Precisa protestar, mas não ao ponto de paralisar as negociações com o governo americano. Isso porque, entre os principais exportadores de aço, o Brasil foi o menos atingido e isso se deve, em grande parte, à boa relação tecida pelo chanceler brasileiro Celso Lafer com o chefe do Escritório de Representação Comercial dos EUA, Roberto Zoellick, que tem nível de ministro. Zoellick, que veio ao Brasil nesta semana para tratar do assunto, estabeleceu uma produtiva parceria com Lafer na reunião da OMC em Doha, no Qatar, quando se decidiu lançar a nova rodada. Foi decisiva a participação do representante americano para que a liberação do comércio agrícola fosse incluída na pauta – posição aliás que lhe valeu pesadas críticas em casa. Zoellick também deixou a avançar a tese brasileira de que as patentes de remédios podem ser quebradas em caso de grave situação de saúde pública. E “trabalhou duro”, como disse, para aliviar a situação brasileira no caso do aço. A rigor, os níveis recentes da exportação brasileira foram mantidos quase sem prejuízo. O que se bloqueou, com tarifas e cotas, foi o aumento das vendas para os EUA. Segundo Maria Sílvia Bastos Marques, presidente do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), órgão de representação das empresas, esse bloqueio representa um prejuízo de US$ 1 bilhão em 3 anos – mais exatamente, receitas futuras que não se realizarão nesse período em que duram as medidas protecionistas. É dinheiro, porém menos do que o prejuízo imediato imposto às siderúrgicas da União Européia, da Rússia, Japão, Coréia e China. Por isso, o chanceler Lafer tratou de manter aberto o caminho da negociação direta, com o objetivo de aumentar a cota brasileira (ao que parece, já negado por Zoellick) ou de flexibilizar a regra. Por exemplo: a CSN exporta para 700 mil toneladas/ano para sua subsidiária nos EUA, que, pois, gera empregos americanos. Talvez esse volume, ou parte dele, possa ser excluído da cota, arranjo já feito para uma empresa da Coréia e outra da Austrália. De outro lado, porém, o neoprotecionismo americano é um desastre de proporções ainda não avaliadas. Mas certamente destruidoras. Eis um ponto importante: o aço que deixará de ir para os Estados Unidos vai para onde? Sobrará no mercado, o que poderá levar a uma depreciação de preço e a uma guerra entre os produtores, possibilidade ainda mais grave quando se sabe que já havia excesso de capacidade de produção. Diante disso, a presidente do IBS, na sua função de defender as siderúrgicas associadas, solicitou a elevação da tarifa brasileira para importação de aço, da 12% para 30% na média. A União Européia ameaça fazer o mesmo, assim como outros países atingidos. E se for mesmo por aí, o mundo cai numa guerra do aço, cujo efeito é um caso clássico do protecionismo quando se espalha. Os preços sobem, os consumidores (de carros, geladeiras etc.) pagam mais caro, a produção cai dado o menor fluxo de comércio internacional, piora a situação das empresas menos competitivas, que demandam mais dinheiro público, perdem-se empregos. Ou seja, acontece em escala global aquilo que o presidente Bush disse pretender evitar nos Estados Unidos. A proteção de três anos foi estabelecida, é o argumento oficial, para que a siderurgia local se coloque de pé. Não vai funcionar, é a opinião quase unânime dos analistas independentes. Como lembrou a revista Economist, em 1976, o então presidente Gerald Ford, também republicano, também atendendo a uma sugestão da Comissão para Comércio Internacional, aplicou sanções às importações de aço para dar um tempo à indústria local. Passados 26 anos, a situação da indústria só piorou, embora em todo este período tenha sido protegida por cotas, tarifas e subsídios, cujo custo pode ter ultrapassado os US$ 30 bilhões. Na verdade, piorou a situação da indústria tradicional, gigantes e ex-gigantes que fabricam aço a partir do minério de ferro. Essa siderúrgica, especificamente, não é competitiva. Seu custo por tonelada de placa de aço está em torno de US$ 470, contra US$ 350 no Brasil ou na Coréia. Há um detalhe muito importante: depois da privatização, com pesados investimentos em tecnologia, as siderúrgicas brasileiras reduziram seu custo de quase US$ 100 por tonelada. Nos EUA, o custo das usinas tradicionais mantém-se estável há muitos anos. Ou seja, gastaram o tempo que lhes foi dado com a proteção para nada mais do que prolongar a agonia. Enquanto isso, prosperaram nos Estados Unidos mini-usinas que produzem aço a partir de sucata, com muito menos mão de obra e a um custo comparável ao brasileiro. Essas mini-usinas também tiraram mercado das tradicionais, afetadas por um problema social. Nos bons tempos, essas usinas tradicionais concederam a seus trabalhadores, organizados em poderosos sindicatos, generosos planos de saúde e de aposentadoria. Foram esses sindicatos que levaram 30 mil trabalhadores numa marcha a Washington para reclamar a proteção. No total, são 160 mil trabalhadores, concentrados em alguns poucos estados – e aqui se chega ao real motivo da decisão de Bush: política, ou os votos daqueles estados. Eis aí o tamanho do desastre provocado por Bush: ameaça criar uma guerra comercial global, coloca um freio nas negociações da OMC, espeta uma conta nas costas dos consumidores, e tudo para defender um punhado de votos. E com uma política que não vai dar certo, pois não há como recuperar a competitividade para daquelas velhas siderúrgicas. Por isso, muitos analistas sugerem que a melhor saída, do ponto de vista da racionalidade econômica, seria o governo assumir os planos de saúde e de aposentadoria. “Salvar os trabalhadores, não a indústria”- tal é a idéia. Ficaria mais barato, mas seria preciso colocar esse custo no orçamento federal. Daí o problema: a restrição à importação é mais cara para o conjunto da economia, mas isso não aparece no orçamento do governo. Como já disse Zoellick algumas semanas atrás: tarifas “são nada mais que impostos que atingem as pessoas de renda mais baixa e média”. A única esperança é que um esperto maquiavelismo esteja orientando a ação de Zoellick, sempre respeitado como defensor do livre comércio. Talvez os votos obtidos por Bush com esse passo atrás sejam os necessários para, mais à frente, com o novo Congresso, concluir a votação da Autoridade para Promoção Comercial (TPA, sigla em inglês), um instrumento legal que dará ao governo americano o direito de negociar acordos comerciais internacionais, inclusive a Associação de Livre Comércio das Américas, a Alca. Esperteza demais? Cinismo? Quem sabe? De todo modo, um risco. O deslavado protecionismo do aço dá razão aos protecionistas do mundo todo e pode, por isso, bloquear as negociações. Para o governo brasileiro, fica a difícil tarefa de reagir, mas não a ponto de quebrar a parceria com os EUA. Defender a indústria local, mas sem favorecer a guerra comercial. Lafer e Zoellick têm mutuamente elogiado a eficácia de sua parceria. Vão precisar dela. Publicado na revista Exame, edição 762

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