Escutem o coração e a razão
Carlos Alberto Sardenberg
No tempo da ditadura, a gente podia votar para deputado e senador. Eleições controladas, claro, a começar pela escolha limitada aos dois partidos autorizados pelo regime: a Arena, governo, e o MDB, oposição consentida. A cada eleição, as esquerdas encaravam dilemas: votar no MDB, anular ou boicotar o pleito?
Argumentos pró e contra: votar no MDB sedimentava o caminho da oposição, mas também legitimava o sistema.
Anular parecia bom, mas nem tanto porque o regime certamente impediria a divulgação do número e do teor desses votos.
Pregar o boicote total – não compactuar com a farsa eleitoral – também parecia bom, mas arriscava ser um enorme fracasso, mesmo porque era difícil fazer essa propaganda.
Finalmente, havia a regra não escrita de que o MDB jamais poderia fazer a maioria, pois, se fizesse, haveria cassações de mandatos em número suficiente para devolvê-lo à minoria.
Nas primeiras eleições, prevaleceu entre as esquerdas a tese do voto nulo, com a palavra de ordem “abaixo a ditadura” a ser escrita na cédula. Sim, a cédula era de papel e a gente tinha de escrever nome ou número do candidato. Ou o protesto.
Nos debates nos grupos de esquerda, um colega sempre se colocava a favor do voto no MDB. Derrotado, dizia que seguiria a orientação central, mas manifestaria seu desacordo. Assim, escrevia na cédula: “abaixo a ditadura, mas sou contra o voto nulo”.
Conto essa história para dizer que toda eleição propõe – ou deveria propor – diversas possibilidades, especialmente quando o sistema é de dois turnos.
Aqui vale considerar o espírito francês: no primeiro turno, vota-se com o coração; no segundo, com a razão.
Votar com o coração ou com a alma abre um amplo leque. Pode-se votar no candidato que fala mais a suas ideias, mas também a seus sentimentos, sua história, suas expectativas. Por isso, é bom que haja vários candidatos no primeiro turno. São várias oportunidades para o eleitor encontrar seu lugar.
Daí, e já tratando desta eleição, é fascista quem diz: “ou você vota no Lula ou é fascista”.
E tem cabeça de ditador quem diz: “quem não vota no Bolsonaro é contra a liberdade”.
Não é preciso pensar mais que alguns minutos para entender, por exemplo, que eleitores de Ciro, Simone e D’Ávila obviamente não são nem fascistas nem inimigos da liberdade.
Assim como quem escolhia votar no MDB não fazia isso para endossar o regime, mas para apoiar os políticos que se arriscavam a ficar na oposição. Ainda assim, o voto nulo ou o boicote também eram opções legítimas, se o eleitor quisesse mostrar total desacordo com o sistema e/ou com os candidatos.
Assim hoje, muito mais hoje. Quando se diz que o eleitor é livre, isso quer dizer que ele tem todas as opções à sua disposição, podendo escolher conforme o coração ou a razão.
Isso resolve o primeiro turno.
E no segundo? Claro que surge uma nova alternativa: votar no menos ruim. Mas todas as outras opções continuam válidas, mesmo quando o eleitor decide escolher pela razão. Ele pode racionalmente entender que os dois candidatos não chegam nem perto de suas ideias e sentimentos ou, pior, que se opõem frontalmente a sua visão política e histórica.
Nesse caso, anular o voto ou abster-se são opções legítimas, puro exercício da liberdade num regime democrático.
Os maiores danos à liberdade individual e ao direito democrático coletivo são causados por aqueles que colocam a faca no pescoço do outro e exigem tal ou qual voto, tal ou qual comportamento. O que é a ditadura se não isso, impor decisões ao outro?
Perguntaram a Thiago Leifert: se colocarem o revólver na sua testa e disserem “escolha um candidato”, quem você escolheria? Ele disse: pode atirar.
Resposta de quem preza a liberdade. A pergunta é de ditador.
O debate da Globo confirmou: há muitas opções para o voto deste domingo, muito além da polarização, muito além das teses do candidato único. O coração e a razão têm muito o que dizer. Escutem.