. TRABALHO MAL FEITO MUITA GENTE DEU MANCADA NA HISTÓRIA DO TRT PAULISTA POR QUE O SISTEMA DE CONTROLES NÃO FUNCIONOU Um festival de mancadas – esse poderia ser o nome da história do prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, de cuja obra foram desviados R$ 160 milhões. Isso é um caminhão de dinheiro e foi sumindo ao longo de anos, enquanto um monte de gente honesta – incluindo deputados, senadores, ministros, o presidente – colocava sua assinatura ou aprovava a concessão de verbas para o prédio. Como é que não viram?
Mais intrigante ainda: a discussão mostrou que definir, aprovar e finalmente realizar um gasto com dinheiro público é um processo complexo, cheio de controles e que passa por muitos órgãos. E como passou por tanto tempo, por tanta gente, uma obra tão irregular? Mais ainda: as irregularidades haviam sido detectadas bem antes do caso se tornar um escândalo. Mas parece que ninguém as tomou a sério, exceto o deputado Giovani Queiroz (PDT-PA) que todo ano, na discussão do orçamento, denunciava irregularidades nas obras de São Paulo e do TRT de Rondônia – e isso com base em documentos do Tribunal de Contas da União (TCU). Em vão, a verba sempre passava, com amplo apoio O TCU é um órgão auxiliar do Congresso Nacional, que fiscaliza o gasto do dinheiro público. Entre outras coisas, faz um relatório de obras irregulares que o Congresso deve ter em conta quando aprova o Orçamento da União. Tudo bem amarrado, portanto: não se pode destinar mais verbas para obras que já estão com problemas. Pois o TCU encontrou problemas no prédio do TRT de São Paulo desde 1993, apenas um ano depois do contrato e início das obras. Mas o edifício continuou recebendo verbas até 1998. Como isso foi possívell? É que os relatórios do TCU eram preliminares, as auditorias estavam em andamento e não havia um julgamento final. Sabem quando saiu esse julgamento? Em 1998, cinco anos depois da primeira verificação. Só a partir daí as verbas para o prédio estavam legalmente proibidas. Durante cinco anos, não tomaram a sério suas próprias avaliações. Por exemplo: em maio de 1996, os ministros do TCU, discutindo o caso, avaliaram uma proposta para aplicação de multa aos responsáveis pelas obras (meros R$ 5 mil para cada um) e outra mais dura, para congelamento das verbas enquanto se fizesse investigação mais profunda. Nenhuma delas passou. Continuou a marcha lenta das auditorias. Assim, foi inteiramente legal a decisão da bancada paulista de deputados federais que, em outubro de 1997, aprovou um projeto de emenda ao Orçamento da União para 1998, concedendo mais R$ 10 milhões para as obras do TRT. Assinaram a emenda deputados de todos os partidos, sem exceção. Na sexta-feira passada, quando perguntados, esses deputados disseram que não tinham então informação sobre as irregularidades. José Genoino (PT) chegou a dizer que essas assinaturas em emendas de bancada são “pura formalidade”. Talvez. Mas não deveriam ser. A bancada, naquela ocasião, rejeitou diversas emendas e aprovou apenas sete delas, consideradas “tecnicamente viáveis e de interesse relevante”. E eram mesmo. Tratava-se de verbas para hospitais, casas populares e para o prédio do TRT, onde seriam abrigadas Juntas de Conciliação destinadas a desafogar o trabalho da Justiça do Trabalho. Assunto que, logicamente, interessou os deputados do PT e suas bases sindicais. Tudo faz sentido, mas há mancadas diversas aí. A primeira e talvez mais importante é a do TCU. Como é que levou tanto tempo para condenar a obra? Depois, dos deputados. Certo, não havia uma sentença do TCU condenando a obra, mas havia relatórios e os alertas do colega deputado do Pará. Eis o problema: os mecanismos de controle funcionaram, as irregularidades foram detectadas, mas ficou por isso mesmo. Como não se pode imaginar que toda essa gente tenha sido comprada pelo juiz Nicolau, é preciso concluir que o pessoal não trabalhou direito. Assinou sem ler, na confiança, por mera formalidade. E tomaram bola no meio das pernas. O Executivo não cometeu menos mancadas. Como no caso dos deputados, o procedimento foi inteiramente legal. O Ministério do Planejamento, que elabora o Orçamento, não pode dizer à Justiça do Trabalho que em vez de construir um prédio em São Paulo deveria, digamos, comprar mais computadores. Os Poderes da República são autônomos e se o Tribunal Superior do Trabalho quer o prédio, e se tem espaço para incluir o gasto em seu orçamento, leva o prédio. E assim foi a sequência: o Tribunal pedia dinheiro para o prédio, o Planejamento incluía a pedida no Orçamento e enviava o projeto para Casa Civil da Presidência da República. A função desta última é verificar se está tudo nos conformes legais. E estava: não havia decisões formais, julgamentos, manifestações do Congresso, da polícia ou da Justiça dizendo que o prédio do TRT paulista estava irregular. Desse modo, a Casa Civil levava ao presidente, que assinava o projeto – em confiança, claro – e o remetia ao Congresso Nacional – para longa tramitação em comissões até ser aprovado no plenário. Só depois disso, outro ministério, o da Fazenda, libera o dinheiro. Repararam os cuidados? Passa por um monte de autoridades, é tudo público e aberto, quem aprova não é quem paga. O governo FHC está correto quando diz que seguiu todos os trâmites legais e que, como os deputados, não sabia das irregularidades. Mas não funcionou. Tudo dentro da lei, cuidadoso, e o dinheiro foi saindo para um obra superfaturada, anos a fio. Como os deputados, também, o Executivo poderia ter ao menos desconfiado. Deveria ter como saber dos problemas já verificados pelo TCU, ainda que este tribunal esteja vinculado ao Congresso. Trabalho mal feito, portanto. Diz o ministro Martus Tavares que o Executivo não tinha como negar um projeto legal e corretamente encaminhado por outro Poder. É verdade. Mas podiam, ele e o ministro do Gabinete Civil, deixar o projeto na gaveta. A demanda por verbas é sempre superior à receita, de modo que há uma seleção, alguns levam, outros não. Poderiam dar prioridade ao submarino nuclear da Marinha, por exemplo. É aqui, nessa seleção, que entram as negociações políticas e pesa o prestígio da autoridade que patrocina a verba. Negociação séria e difícil: um ministro quer verba para a merenda, outro para os flagelados da seca, outro para uma estrada, para um hospital ou para uma obra útil da Justiça do Trabalho. Pode ter corrupção aí? Pode. Alguma autoridade pode levar favores para patrocinar um projeto. Mas o importante é notar que todo projeto de gasto público precisa passar por muitas instâncias e muitas pessoas – e aí, de novo, fica difícil imaginar que o juiz Nicolau comprou todas pessoas. Em resumo, dos envolvidos, a amplíssima maioria certamente entrou na história de boa fé. Muitos não trabalharam direito. Um ou outro pode ter tido comportamento ilegal. (Não esquecer a prudência: todos são iguais perante a lei) De todo modo, para apurar crimes, também há poderosos instrumentos: Ministério Público, Polícia Federal e órgãos de controle da administração. É só trabalhar direito. O consolo é que o sistema de controles – se não impediu o desvio de dinheiro público – permitiu que o roubo fosse afinal descoberto. Fica de lição. Como diziam muitos deputados, eles não assinam mais emendas sem verificar. Certamente o pessoal do Executivo ficará mais esperto. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 17/07/00)