ECONOMIA, POLÍTICA E CRIME

. Quando o crime gera desemprego Eis a situação: um garoto de 15 anos, morador numa favela de uma grande cidade brasileira, que precisa levar dinheiro para casa. Suas opções: um emprego legal, entregar pizza, ou ilegal, entregar cocaína. Como tomará sua decisão? Entregar pizza paga menos, é claro. É da regra do jogo da vida: menor o risco, menor a paga. Mas a legalidade traz muita recompensa. A atividade legal é, ou deveria ser, moral e socialmente mais respeitada e aceita. Além disso, tem valor um emprego certo, com carteira assinada, crachá, salário regular, férias, 13o., FGTS para comprar ações da Petrobrás e da Vale, um bom uniforme. Já entregar cocaína é, ou deveria ser, atividade de risco máximo. No limite, o garoto pode ser morto por bandos rivais ou numa ação da polícia. O risco, digamos, normal, é o de ficar preso em uma unidade da Febem. Além disso, o garoto terá vida social difícil, pois sua condição de traficante deve afastar amigos e namoradas. Agora, a realidade. A legislação brasileira, para proteger os garotos e garotas da exploração do trabalho infantil, impede que uma pizzaria contrate regularmente um menino de 15 anos. Pode admiti-lo como aprendiz, mas para isso a empresa precisaria estar registrada em algum programa de treinamento reconhecido pelo Ministério do Trabalho. Além disso, só é possível ser aprendiz de uma profissão reconhecida – que não é o caso de entregador de pizza ou pegador de bola em clubes de tênis. Ou seja, na pizza, o garoto não terá carteira assinada, nem outras das garantias e vantagens do emprego legal. Já no lado da cocaína, o risco não parece tão grande. A polícia quase não aparece por lá (periga aparecer antes a fiscalização do trabalho infantil na pizzaria), os raros meninos que vão para a Febem logo estão de volta, o grupo social respeita os garotos que pertencem a uma quadrilha organizada. O risco maior vem mesmo das brigas entre bandos rivais, mas o menino que é membro disciplinado de um deles se sente mais seguro. Resumo: o emprego legal não compensa, o crime, talvez. Nas estatísticas do IBGE, o garoto que entrega cocaína não aparece como empregado ou ocupado. Vai engrossar o número de desempregados, pois aqui há outra contradição. Por causa da legislação que supostamente o protege, um garoto menor de 16 anos tem muita dificuldade em arranjar um emprego formal de aprendiz. Mas nas estatísticas do IBGE, um garoto de 14 anos já faz parte da força de trabalho. Já viram: a lei o afasta do emprego legal e a estatística o desemprega. Mas o que interessa para o caso é a seguinte provocação: no debate sobre causas da criminalidade, há uma vertente para a qual a origem de tudo é a pobreza e o desemprego. O caso da pizza x cocaína mostra um outro lado interessante. Não é o desemprego que causa o crime – ou seja o garoto não vai entregar cocaína porque está desempregado – mas é o fato do crime compensar (ou a facilidade do serviço de entregar cocaína) que causa o desemprego formal e medido. Assim, uma repressão policial eficaz – com policiamento comunitário permanente e serviços de inteligência – desbarataria as quadrilhas e bloquearia o tráfico de drogas. Com lei e ordem, mas sem a arbitrariedade e a corrupção policial, não compensaria mais o ofício de entregar cocaína. Entregar pizza se tornaria mais atraente – ainda mais se a legislação fosse alterada de modo a permitir o trabalho formal dos garotos e garotas que o IBGE inclui na força de trabalho. Isso não é exploração. O senso comum sugere e a experiência de muita gente mostra que muitos garotos e garotas precisam trabalhar e podem fazê-lo sem deixar de ir à escola e sem perder a condição de adolescentes. Mas qual o propósito disso tudo? É mostrar que se deve tomar muito cuidado com estatísticas e números, especialmente quando utilizados para apoiar argumentos ideológicos. Uma série mostrando que houve aumento do número de crimes em uma determinada região na qual cresceu o número de desempregados – isso não prova rigorosamente nada. Simplesmente pode ter piorado o policiamento. Ou uma coisa mais simples ainda: podem ter-se estabelecido mais bares, que é onde se dá a maior parte dos atos violentos à noite e em finais de semana. Claro que é essencial olhar números e estatísticas, mas objetivamente e comparando muitas situações, em muitos períodos e países. Marcos de Barros Lisboa, diretor da FGV-Rio, publicou no suplemento de Valor Econômico de 1o. de fevereiro último um magistral ensaio intitulado “Um país rico de pobres”. Trata-se de uma extraordinária análise da desigualdade no Brasil, da qual se pode concluir que não há correlação direta entre desigualdade e aumento recente da criminalidade. O motivo é simples: “com variações marginais, a desigualdade de renda no Brasil é essencialmente a mesma desde 1970”, diz Lisboa. Nesse período, o país cresceu, teve recessão, passou pela superinflação, duas moratórias e estabilizou a moeda. No meio disso tudo, os 10% mais ricos continuaram se apropriando de cerca de 50% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres ficam com 10%, “com variações de dois ou três pontos percentuais ao longo dos anos”. Nessa pequena margem de variação, os indicadores pioraram ao longo dos anos 80 e melhoraram com o Plano Real, voltando aos níveis da década de 70. Segundo o Relatório sobre Desenvolvimento Humano, da ONU, de 2001, hoje os 10% mais ricos no Brasil ficam com 46,7% da renda nacional, o que nos deixa em terceiro lugar na América Latina. Os ricos de Nicarágua e Chile levam um pouco mais. Ou seja, não pode ter sido a política chamada neoliberal a causa da desigualdade e da criminalidade. É preciso procurá-la em outro lugar. O fato de haver mais crimes violentos em certas regiões urbanas pobres não indica que a pobreza é a causa, mas que naquelas áreas quase não tem polícia, justiça e ordem social. Não por acaso, a demanda das pessoas dessas áreas é justamente mais polícia, mas polícia legal. O diabo é que "lei e ordem" ficou associada à direita (à pior direita, na verdade) e ninguém gosta de ser de direita neste país, seja lá o que isso signifique hoje em dia. E enquanto ficamos nessas ideologias, o combate ao crime fica para depois. Publicado em O Estado de S.Paulo, 25 de fevereiro de 2002

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