E COM VOCÊS, OS NEO-SOCIAL DEMOCRATAS

. ”Vocês viram a Inglaterra. Copiem”.
A frase é do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi dita na última sexta, a propósito da privatização de Furnas. FHC quis dizer que a estatal brasileira pode ser vendida como Margareth Thatcher vendeu algumas estatais britânicas: leiloando as ações para milhares de investidores.
Mas a frase pode revelar mais do que isso. Talvez um ato falho, talvez só a imaginação do jornalista, mas faz sentido pensar que o presidente gostaria que todo processo político inglês recente tivesse sido copiado no Brasil. Para não confundir demais o leitor e a leitora: FHC gostaria de ser só o nosso Tony Blair e não um híbrido de Thatcher e Blair.
FHC aprecia a proposta da Terceira Via (ou Novo Trabalhismo ou Nova Social Democracia) com a qual Blair constrói sua carreira e sua biografia. Mas, convenhamos, é mais fácil exercer esse papel depois que o trabalho sujo de desmonte do velho sistema já foi feito.
Corte de gastos públicos, redução do tamanho do Estado, demissão de pessoal, ajuste fiscal, reforma das leis trabalhistas, abertura, privatizações, quebra do poder dos sindicatos ? Thatcher não deixou pedra sobre pedra.
Aí vem Blair com a conversa mansa da reconstrução, novos valores sociais, solidariedade com responsabilidade ? e ainda dando a sorte de apanhar a Inglaterra em um ciclo de crescimento econômico, em grande parte consequência tardia das políticas liberais.
Já FHC assumiu um país emergente com superinflação e todas as reformas por fazer, em meio a um processo de globalização.
Em política, como na vida, é sempre mais fácil ter posições simples e diretas. Inclusive facilita o trabalho do eleitor (e dos jornalistas, embora isso não seja tão importante). FHC poderia ter incorporado uma Thatcher: o mercado tem que ser livre, o Estado menor, a economia aberta, nenhuma estatal mais e os sindicatos não podem mandar no país.
Entretanto, social democrata, FHC juntou o serviço de Thatcher à Terceira Via de Blair. Assim, o mercado deve ser livre, mas não se pode ser “fundamentalista de mercado”. É preciso privatizar, mas com ressalvas. É preciso reformar e reduzir o Estado, mas não se pode abandonar políticas públicas de educação, saúde, reforma agrária. Deve-se abrir ao capital estrangeiro, mas defender os nacionais e controlar os fluxos internacionais.
Não admira a confusão na política nacional, de que a privatização de Furnas é um caso exemplar. Trata-se apenas de uma empresa geradora de energia elétrica, mas em torno dela se desenvolve uma batalha ideológica.
Opor-se à privatização de Furnas – essa é uma postura de esquerda ou de direita? Social democrata ou liberal?
A pergunta pode parecer ingênua. Todo mundo sabe que a privatização é ponto básico do modelo liberal (ou neo-liberal, como queiram). Além disso, todos os esquerdistas manjados do país são contra privatização de Furnas e de qualquer outra estatal, qualquer que seja o modelo de venda.
Mas o que faz o deputado do PFL, Francelino (A Arena é o maior partido do ocidente) Pereira ao lado desses que querem Furnas estatal? Mais ainda: o presidente da estatal, Luís Carlos Santos, também é do PFL e não faz outra coisa senão boicotar o processo de privatização.
O partido deles tem liberal no nome e nada na biografia deles autoriza qualquer proximidade com a esquerda. Ou seja, pelo menos alguns direitistas combatem a privatização. A propósito, os militares em geral também se opõem à privatização, em nome de um nacionalismo que já foi de esquerda e hoje é de direita.
Ainda assim, o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves, ao verificar uma pesquisa de opinião que não encontrou em seu partido traços de social democracia, resolveu começar o processo de volta à esquerda justamente se opondo à privatização de Furnas.
Com outros membros do partido (que tem social democracia no nome, não esqueçamos), foi queixar-se ao presidente de uma privatização conduzida pelo ministro de Minas, Rodolpho Tourinho, que é do PFL.
Conversa vai, conversa vem, e os tucanos saem de lá dizendo que a privatização de Furnas será feita via pulverização de ações, preferencialmente para investidores brasileiros, e que esse é um modelo melhor do que a opção de se vender o controle da empresa em bloco para alguma multinacional.
Os pefelistas reclamam, pois afinal o ministério do setor é deles. E Francelino Pereira acrescenta uma outra vertente: Minas é contra a privatização. E parece fazer sentido, pois Neves também é mineiro, assim como outro tucano importante que se incomoda com a venda de Furnas, o ministro das Comunicações Pimenta da Veiga.
O assunto tornou-se tão importante que exigiu uma entrevista do próprio FHC, na sexta, quando ele sugeriu copiar a Inglaterra. Mas não ficou claro. Furnas será pulverizada, vendida a milhares de pequenos investidores (só nacionais?), sem que haja o controle de um único investidor privado forte. E no começo, pelo menos, o governo vai indicar a diretoria da empresa e dar a linha, segundo FHC.
Em seguida, o presidente do BNDES, Francisco Gros, diz que ainda não está decidido se o governo manterá ou não participação em Furnas, esclarece que as ações serão vendidas no Brasil e no exterior, pois não há capitais suficientes aqui, e que a empresa será comandada pelo “somatório de acionistas”.
Descreveu assim o modelo inglês, mas inglês antes de Blair. Liberal, portanto. Ainda assim parece agradar ao PSDB no seu esforço de, digamos, “social-democratizar-se”. E ficamos assim: a venda pulverizada aqui é de esquerda; a transferência de controle a uma só empresa é privatização de direita. E se o novo controlador for estrangeiro, é também entreguista.
No caso específico de Furnas, a privatização pode ser também uma política anti-Minas Gerais, quer os mineiros estejam à direita ou à esquerda ou onde sempre estiveram.
E depois os tucanos reclamam que os eleitores não reconhecem seu caráter social democrata.
Em tempo: privatização é a venda de uma estatal (ou serviço) ao setor privado, qualquer que seja o modelo de venda, não importando se a um ou mil compradores. É uma política que nasceu liberal, sob a teoria de que o Estado é basicamente ineficiente para fabricar coisas ou prestar certos serviços. Hoje, a Terceira Via, o Novo Trabalhismo e a Nova Social Democracia incorporam essa política. Pode ser difícil a um neo-social democrata explicar isso aos seus eleitores, mas é certamente mais difícil explicar que a privatização “não é isso que vocês estão pensando”.
(Publicado em O Estado de S.Paulo 12/06/00)

Deixe um comentário