. –É perigoso quando os agentes do Estado acham que o cidadão não sabe tomar conta de sua vida—
Pode parecer coisa pequena, mas a nova regra da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ? pela qual as farmácias só podem vender medicamentos e não podem deixá-los ao alcance do consumidor, mas escondidos atrás do balcão ? revela um postura grave em vários aspectos. A idéia é evitar que as pessoas tomem remédios desnecessariamente e/ou em excesso. Mas essa regra só se sustenta quando se admite que: o cidadão não sabe tomar conta de si e as companhias farmacêuticas e as farmácias conspiram para enganar o pobre consumidor e levá-lo a consumir o que não precisa, nem deve.
Trata-se de uma visão paternalista e autoritária. No primeiro caso, porque se entende que o consumidor brasileiro não é capaz nem de comprar um comprimido para dor de cabeça. No segundo, pior ainda, se supõe que o Estado, pelos seus agentes, sempre sabe o que é melhor para o cidadão. É precisamente essa visão que leva à limitação das liberdades individuais e, no limite, à censura nos meios de comunicação.
A censura se baseia em dois pressupostos: os veículos de comunicação entregam informação, notícias e diversão não adequadas. Leitores, ouvintes, internautas e telespectadores não conseguem perceber isso, de modo que os agentes do Estado precisam controlar a programação e as notícias para ?defender o público?.
Ou seja, o brasileiro, deixado à sua livre escolha, não saberá nem comprar uma aspirina, muito menos escolher um jornal ou um programa de televisão.
Uma teoria econômica já clássica sustenta que as pessoas sempre fazem escolhas racionais, dadas as informações de que dispõem. Compram, vendem, investem, gastam, enfim, organizam sua vida econômica de modo racional e conforme seus interesses.
Mais recentemente, introduziu-se uma mistura muito interessante entre economia e psicologia, para avaliar o comportamento econômico das pessoas. E se verificou que muitas vezes a escolha é menos racional e mais motivada por sentimentos variados (cobiça, medo, inveja, vontade de punir o outro, vontade de imitar os outros, etc.). Mais exatamente, a escolha tem uma base racional, mas é temperada ou, no limite, modificada pelos sentimentos.
Se o preço das ações está em alta, é racional comprá-las. Mas muitas pessoas compram porque, afinal, todo mundo está comprando e parece moleza ganhar dinheiro na farra da bolsa. Cobiça, maria-vai-com-as-outras.
Sendo isso verdade, qual o resultado que se tira daí? Que se deve impedir que as pessoas comprem ações? Óbvio que não. O caminho é garantir, por exemplo, ampla informação ao investidor, igualdade de oportunidades, bom funcionamento do mercado etc.
Mesmo porque somos todos razão e coração, pensamento e sentimentos, e temos o direito de agir livremente com base nisso.
Mas reparem como a situação é parecida. A Anvisa acha que o cidadão não sabe comprar remédios, por isso coloca um obstáculo entre ele o produto. Assim, o sujeito entra na farmácia e não poderá apanhar na gôndola o medicamento, mas precisará solicitar ao vendedor da farmácia. Qual a suposição? Que este, vendedor e funcionário, vai dar a orientação correta e impor limites.
Igualmente, se a Comissão de Valores Mobiliários entender que o brasileiro não sabe comprar ações, vai exigir que ele só possa fazer isso pedindo a um corretor, também na suposição de que este vai orientar e evitar bobagens.
Warren Buffet, que ganhou muito dinheiro com investimentos racionais, disse uma vez: a última pessoa com a qual você deve se aconselhar para comprar ações é com um corretor/vendedor de ações. É como perguntar ao barbeiro: devo cortar o cabelo?
O interesse racional do funcionário da farmácia é vender mais, não menos, igual ao interesse do corretor. Na suposição de que o consumidor/investidor é incompetente, ele estará se livrando de sua ignorância e de seus (maus) sentimentos para cair no interesse do vendedor.
Tudo considerado, idéias como essa da Anvisa não são apenas autoritárias. São também ineficientes.
Vai pelo mesmo desastre a visão de que as companhias farmacêuticas e as farmácias estão apenas procurando enganar o consumidor para extrair dele o máximo dinheiro. Está evidente que as companhias precisam vender (para gerar, lucro, renda e emprego), mas não é menos evidente que mal atendimento e produtos que não servem ou não interessam ao consumidor não vendem.
Mas cigarro, que faz mal, vende, dirão. Mas cigarro também dá prazer, de modo que o fumante está sempre fazendo um balanço entre custos e benefícios. E os muito viciados são como os hipocondríacos. Por mais que a Anvisa coloque obstáculos, eles saberão como encontrar o seu vício.
Do mesmo modo, não tem sentido o argumento de que não se pode vender picolé na farmácia porque isso atrai o consumidor e, este, estando lá, pode comprar um antibiótico. Não tem cabimento, não é mesmo? O sujeito vai gastar um real no sorvete e leva um medicamento de 50 só porque passou por lá? E quem precisar do antibiótico, saberá onde encontrá-lo, mesmo sem receita.
O que a Anvisa tem a fazer, como a CVM, é garantir que os fornecedores entreguem bons produtos às farmácias, que o mercado seja livre e competitivo e que o consumidor tenha a ampla informação. E que não se venda medicamente crítico sem receita.
De resto, deixem que a vida corra. Tudo considerado, as pessoas trabalham, produzem, ganham, poupam, casam, compram casas, educam os filhos, investem em ações e nos títulos do Tesouro. Não chega a ser um mundo perfeito, mas está longe de ser uma zona montada por consumidores idiotas vítimas de companhias diabólicas e espertas.
Publicado em O Estado de S.Paulo, 24 de agosto de 2009