. Tudo bem, pessoal, não é só o BC
O artigo da semana passada ? ?Não é o BC, estúpido? ? provocou reações, algumas esculhambações mas também argumentos interessantes, que sugerem um bom debate. Há um outro lado a registrar aqui. Todo mundo ou quase todo mundo entendeu a idéia central do texto: é um equívoco atribuir exclusivamente ao Banco Central a culpa pelo título brasileiro de campeão mundial de juros altos. Logo, a culpa maior pelo fato de termos juros altos por tanto tempo ? um problema, digamos, estrutural ? deveria ser procurada em outro lugar além das reuniões do Comitê de Política Monetária, Copom. O artigo sugeria, então, que o Congresso e os partidos ali instalados, por exemplo, têm mais culpa por não conseguirem reformar um regime de contas públicas que leva ao aumento de gastos ruins e elevação da carga tributária. Dizia ainda que o sistema político em geral era responsável pela criação desse setor público inviável. Mais recentemente, essa criação vem da Constituição de 1988. Mas pratica-se aqui a cultura de achar que todo gasto público é bom e sai de graça, especialmente para certas clientelas. Entre os que criticaram o artigo, quase todos admitiram que carregamos, de fato, esse pecado fiscal. Mas insistiram que o BC do governo Lula tem culpa maior do que a sugerida no texto. Muita gente não gostou do título, obviamente uma adaptação da célebre frase do políticólogo americano, James Carville, explicando por que Bill Clinton, na primeira eleição presidencial, estava vencendo o então presidente George Bush pai. ?É a economia, estúpido? ? decretou Carville, diante de um comentário de Bush reclamando de seus baixos índices. Voltando ao nosso artigo, muitos sugeriram que o título correto deveria ser: ?Não é só o BC?. O ?só? tem sentido óbvio. A eliminação do ?estúpido? é por boas maneiras. Para quem não conhece a origem da frase, esta fica ofensiva para muita gente séria que atribui culpa razoável ao Copom. O artigo da segunda passada registrou claramente a opinião desse pessoal, acrescentando-se inclusive que o conservadorismo deste BC poderia ser responsável por dois ou três pontos a mais na atual taxa básica de juros. Ressalvava, porém, que isso ainda deixaria a taxa real de juros muito maior do que na média dos emergentes, sendo esta a prova de que o problema maior estava em outro lugar. Mas críticos ilustres do BC, economistas do primeiro time, alguns na equipe econômica do governo, entendem que a história é um pouco diferente. Eis os seus argumentos: . dois ou três pontos a menos na taxa básica de juros já fariam uma enorme diferença no curto prazo, proporcionando crescimento mais forte. Mas poderiam ser mais pontos. . o pecado fiscal seria responsável por dois ou três pontos na taxa futura de juros, em torno dos 15%; e ficaria faltando explicar outros 5 pontos nessa taxa, que são a diferença entre o nível brasileiro e o de outros países semelhantes; e o erro de condução do BC seria o principal suspeito por esse excesso. . comparando o momento de hoje com o de 2000, quando juros reais e nominais eram parecidos com os atuais, verifica-se que muita coisa está melhor, a saber: a dívida externa pública foi liquidada; risco Brasil na casa dos 200 pontos, contra 800 antes; governo colocando títulos lá fora com spread abaixo dos 200 pontos; enorme superávit comercial, parte do qual pode ser queimada em mais importações, as quais, de sua vez, equilibrariam o aumento da demanda com os juros mais baixos; sistema de metas de inflação consolidado; oito anos de superávit primário; três anos de queda na relação dívida pública/Produto Interno Bruto; queda na curva de juros futuros. Resumo dessa parte da ópera: alguns dos principais indicadores brasileiros continuam piores que os principais emergentes. Por exemplo: a relação dívida/PIB é de 50%; nos outros, abaixo de 30%. O gasto público aqui passa dos 40% do PIB; nos outros chega no máximo a 30%; em consequência, a carga tributária brasileira é muito maior. E assim vai. Tudo isso justificaria juros reais maiores do que nos outros emergentes, mas não tanto quanto hoje. A taxa real é, aqui, de 11,4% ao ano (a taxa básica nominal, do BC, descontada a previsão de inflação) ou 9,8% (se considerados juros nominais de 360 dias, swap pré-DI, descontada a mesma inflação prevista, 4,5%). Mas nos outros países, essa taxa real é de até 3%. Por isso e tomando em conta os avanços macroeconômicos dos últimos anos, se admite que a taxa no Brasil poderia estar nos, digamos, 6 a 7% ao ano, para não exagerar. Assim, as taxas nominais deveriam ser de 12% ao ano, quatro pontos e meio abaixo da atualmente fixada pelo Copom. Não é, claro, o que pensa o Copom. Em sua última ata, divulgada na semana passada, o BC diz que as taxas atuais já estão próximas dos juros de equilíbrio de longo prazo. A ata indica que o Copom prefere claramente o processo de reduzir lentamente, prática que, afirma, permite ir mais longe. Mas não indica nem sugere qual é o ponto de chegada. Por outro lado, o que inquieta os críticos do BC é que o banco praticamente não explica o peso que atribui ao pecado fiscal na taxa de juros. Na verdade, o BC simplesmente não trata disso. Na última ata, faz uma referência de uma linha, dizendo que o recente aumento do salário mínimo e o aumento dos gastos do governo federal vai impulsionar a demanda. E daí? Até que ponto? E como o risco fiscal afeta os juros? Talvez o BC não queira tratar de assunto por receio político. Qualquer comentário aí pareceria crítica à política fiscal do governo Lula ? o que daria confusão. De qualquer modo, fica um enigma: excluído o pecado fiscal, os juros poderiam bem menores. Se o problema está nas contas públicas, então o BC deveria explicitar, no mínimo para abrir o debate. Debate que colocamos aqui, ressalvando: o objetivo do último artigo era opor-se à tese de que o único problema do país é um BC conservador. Mas, tudo bem, pessoal, não é só o BC. Publicado em O Estado de S.Paulo, 20/março/2006