COMO OS JUÍZES DEVEM DECIDIR?

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A cabeça dos juízes    
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, disse que há uma ?mesmice corporativa? no Judiciário, que enxerga ?em cada esquina deste país tramas diabólicas contra a magistratura?.     
O presidente da Associação Paulista dos Magistrados, desembargador Celso Luiz Limongi, enxerga essa trama numa esquina de Washington, onde fica a sede do Banco Mundial. Para Limongi, essa é a instituição que patrocina a reforma do Judiciário recentemente aprovada no Brasil pelo Congresso Nacional e ora em fase de implantação. E o Banco Mundial, de sua parte, estaria a serviço das grandes corporações transnacionais.     
Mais ainda. Conforme explicitou em entrevista à rádio CBN, na última quinta, e ao Estado, na sexta, Limongi entende que a reforma do Judiciário, especialmente a súmula vinculante, foi feita para introduzir no Brasil um ?Judiciário que manda cumprir aqueles contratos-padrão celebrados sempre em favor dos grandes complexos financeiros (internacionais)?… ?em detrimento das empresas nacionais?.     
A reforma do Judiciário tramitou no Congresso Nacional por mais de dez anos. No ano passado, com um impulso do governo Lula e do próprio Jobim, o projeto finalmente andou e terminou aprovado. Os juízes, pelas suas diversas instituições, manifestaram-se amplamente, assim como os diversos setores sociais interessados.     
Pode-se dizer, portanto, que a reforma afinal votada é uma decisão da sociedade, pois aprovada por um Congresso livremente eleito. Sendo essa a função do Legislativo, fazer as leis, os magistrados, mesmo não apreciando diversos aspectos da reforma, não teriam outro caminho senão observá-la e cumpri-la, certo?     
Depende, respondeu o desembargador Limongi. Para ele, os juízes devem estar atentos ?às entrelinhas da lei?. Mais que isso, devem procurar saber ?quem está por trás do legislador? ou ?a quem o legislador está servindo?. Se, nessa análise, o juiz entender que a lei foi feita para ?proteger grupelhos que estão aí junto ao poder, então não tem nenhuma obrigação de cumprir essa lei?, sustenta Limongi.     
Por tudo isso, o desembargador Limongi associa-se à tese de que o juiz não deve se ater a fazer cumprir a lei e os contratos, mas deve interpretá-los, equilibrá-los, levando sempre em conta sua função social e os princípios da Constituição, especialmente o de promover o bem comum, erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais.     
Em resumo, para fazer justiça social, o juiz deve ignorar leis e mudar contratos.     
A tese explicitada com rara clareza pelo desembargador Limongi está longe de ser um ponto de vista isolado. Ao contrário, está amplamente difundida nos tribunais brasileiros e representa, para dizer o mínimo, um enorme problema social, político e econômico. Se for aplicada amplamente pelo Judiciário brasileiro, o resultado será uma enorme insegurança jurídica.     
É certo que os juízes são constantemente chamados a interpretar a lei e os contratos. Sempre há pontos obscuros, aspectos controvertidos, situações não previstas a resolver. Também podem sair leis e contratos inconstitucionais. Mas quando se amplia ao extremo a possibilidade de interpretação, em nome de princípios abstratos, coloca-se o juiz acima das leis. Dá-se a ele o poder de decidir conforme sua subjetividade e suas preferências políticas e ideológicas.     
Onde está o bem comum? Para os partidos da extrema esquerda, está na eliminação da propriedade privada dos meios de produção. Para os partidos à direita, é justamente o contrário, o bem comum virá quando todos tiverem acesso à propriedade privada e quando o Estado for o menor possível. Entre um ponto e outro, diversas posições políticas tentam combinar mercado privado e Estado.     
Daí a necessidade das eleições. Os partidos pedem votos para seus programas. Formam-se as maiorias nos parlamentos, votam-se as leis. Assim, se o Congresso brasileiro aprovou emenda constitucional eliminando a distinção entre empresas de capital nacional e estrangeiro, considerando brasileira a companhia aqui instalada, o juiz não pode reinterpretar essa norma constitucional de modo a favorecer a empresa nacional num caso contra uma multinacional.     
Outro exemplo: todo mundo é a favor da erradicação da pobreza. É o óbvio, o princípio abstrato que está na Constituição e que a rigor não diz nada. A questão é como erradicar? Com distribuição de renda mínima aos pobres, dizem alguns. Nada disso, dizem outros estudos. Isso apenas torna os pobres dependentes da ajuda do Estado. A pobreza se combate com educação, escola para todos. Outros ainda dizem que o único remédio contra a pobreza é o acelerado crescimento econômico.     
Políticas diferentes resultam daí. Se a escolha política, numa democracia representativa, é pelo crescimento acelerado, então precisamos de muito capital estrangeiro para isso. Ou seja, esse investimento estaria claramente a favor da justiça social.      
 Juízes não são eleitos, não apresentam seus pontos de vista políticos e ideológicos para o crivo do voto. Portanto, não podem se basear neles para interpretar as leis. Ao contrário, precisam respeitar as leis e o espírito das leis, que se forma no debate político e nas votações no Congresso.     
O Banco Mundial é uma instituição internacional voltada para o apoio ao desenvolvimento. Financia desde açudes no Brasil até o treinamento de enfermeiras na África. Financia também programas de reforma administrativa em países emergentes e pobres, por entender que a burocracia atrapalha os negócios e assim emperra o crescimento.     
A reforma do judiciário, mundo afora, é parte desse esforço. Uma pesquisa do Banco Mundial ? ?Fazendo negócios? ? mostrou que o tempo médio de solução de um conflito comercial na justiça brasileira é de 566 dias. É o pior resultado entre os países relevantes. (Ainda assim, sempre que cito esse dado, muita gente pergunta: me diz onde fica esse tribunal tão rápido?)     
A reforma em curso busca reduzir esse tempo. Entre outras coisas, isso exige, sim, uma Justiça mais uniforme, mais previsível e segura. Exatamente o oposto do que seria um sistema em que cada juiz pudesse interpretar cada caso conforme suas próprias convicções do que seja certo ou errado, justo ou injusto. Publicado em O Estado de S.Paulo, 07, fevereiro, 2005

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