COMEÇA A ERA LULA: DUREZA

. Terão paciência? Conversas com economistas ligados a Luiz Inácio Lula da Silva, incluindo alguns que participaram da campanha, indicam a seguinte linha geral de política econômica: . dar graças a Deus que o ajuste externo esteja quase feito; . avançar nesse ajuste, em particular de modo a ampliar, e muito, o superávit do comércio externo; . acumular reservas em dólares (alguns sugerem que o Tesouro, órgão do Ministério da Fazenda, deveria comprar dólares); . ser extremamente rigoroso (xiita mesmo) no ajuste das contas públicas, internas; . fazer, por ora, tudo o que o mercado quer, sobretudo manter o superávit primário, sendo que muitos, no PT, consideram inevitável aumentar esse superávit no ano que vem; . se o FMI pedir, atender, pois, na transição, é o único que dá crédito ao Brasil; . uma manobra estreita com a inflação: não deixar que ela escape, mas também não forçar a queda abrupta pois isso exigiria juros mais elevados e imporia obstáculo ao crescimento; além disso, uma inflação um pouco acima dos 10% ajuda nas contas públicas (desvaloriza dívidas e gastos e aumenta a receita nominal); . a taxa básica de juros (21% ao ano) não pode cair acentuadamente logo de cara, mas não precisa subir e pode até cair moderadamente em curto prazo; . manter o regime de metas de inflação, porque o mercado local e internacional (já em conversa “aqui entre nós”, a maior parte dos economistas que trabalham com Lula considera precário e fraco o modelo adotado pelo Banco Central); . na vida prática, economistas e outras lideranças petistas estão convencidos de que precisam entregar a autonomia do Banco Central, tal como fez Tony Blair. O objetivo básico é conquistar confiança, firmar reputação nos mercados e nos meios econômicos em geral, nacionais e internacionais. Obtida essa confiança – e mais, é claro, uma montanha de dólares, com consistente e enorme saldo comercial – situação que, acreditam os economistas ligados a Lula, pode ser alcançada em pouco mais de um ano, aí sim, começa a mudança. O primeiro ato, diz um dos economistas, conhecido por seu bom humor e ironia, será então telefonar para o FMI e dizer: “olha aqui, vocês não precisam mais aparecer por aqui. E sabem o que mais? A gente nunca acreditou nessa conversa de vocês. Bye, bye”.Mas isso ainda é apenas uma brincadeira. A agenda inicial é, ao contrário, do tipo “yes, sir”. Trata-se, obviamente, de uma agenda restritiva, que coloca problemas políticos. Lula teve, grosso modo, dois tipos de eleitores. Os 35% que o acompanham há muitos anos – o pessoal da mudança para valer – e os 25% que ganhou nesta eleição com as alianças e o discurso ao centro, mais a imagem suave. Estes últimos perderam o medo de Lula e fizeram uma aposta do tipo “quem sabe ele dá uma melhorada nas coisas”. Portanto, com mais ou menos fé, mais ou menos ênfase, seus eleitores esperam mudanças para melhor. Têm esse direito, pois votaram no candidato que ofereceu isso. Por outro lado, uma lei universal da política diz o seguinte: quanto mais perto do poder, mais conservador e mais realista se torna um partido. Está acontecendo de novo. Na reta final da campanha, agindo não mais como competidor mas já como governo eleito que pretende influir nas expectativas, o coordenador do programa Lula, Antônio Palocci, assumiu o papel do cara que vai dizer não. Disse que os juros não podem cair assim por mera vontade do governo; que as negociações para aliviar os pagamentos que os Estados fazem à União demoram no mínimo um ano, possivelmente dois; que os salários, incluindo o mínimo, não podem subir fortemente de uma hora para outra; e que o governo Lula vai manter e provavelmente aumentar o superávit primário das contas públicas, com o que não haverá dinheiro para elevar logo o salário mínimo e os salários do funcionalismo. Ou seja, deu caráter oficial às mensagens que os economistas vêm passando há semanas. A questão é: como reagirão os eleitores e seus representantes, que são os governadores, prefeitos, parlamentares, partidos, sindicatos e associações civis? Já há lideranças sindicais dizendo que não se pode esperar aumentos salariais no primeiro ano. E há também um João Pedro Stédile, do MST, dizendo que Lula pode acabar como um De la Rúa se pedir paciência ao povo em vez de iniciar logo as mudanças. Mas Lula terá de pedir paciência aos eleitores. Não é um pedido absurdo, convenhamos. Se os eleitores compraram a tese de que o país passa por uma grave crise, não é difícil que aceitem a conversa segundo a qual o novo governo precisa de um tempo para ajeitar as coisas. O problema é que, ao longo de anos, a propaganda petista passou a impressão de que é fácil mudar, já que todos os problemas decorreriam de vícios morais do governo FHC, inclusive o de ser um lacaio dos banqueiros e dos especuladores internacionais. Se fosse mesmo assim, bastaria entrar um governo do bem para que tudo se arranjasse. Ora, o governo Lula é do bem, logo a mudança é para já, tal é a conclusão que decorre dessa visão ideológica. Quantos eleitores (e seus representantes) pensam assim? Quantos estão dispostos a esperar? Não se sabe, mesmo porque vai depender da capacidade de liderança de Lula. Um presidente recém eleito, com um caminhão de votos, tem essa liderança natural por algum tempo. Mas precisa consolidá-la com iniciativas e acertos rápidos. Digamos que aquele arranjo de política econômica definido no início deste artigo funcione razoavelmente. Resultaria um cenário de queda do dólar, do risco Brasil e, pois, dos juros, com alta moderada da inflação. Se, ao mesmo tempo, o governo encaminhasse no Congresso importantes reformas prometidas (tributária e previdenciária, especialmente), certamente ganharia confiança, com o que compraria tempo para implementar as políticas num ambiente de relativa paz. Mas essa travessia passa por obstáculos. Por exemplo: digamos que a inflação avance para a casa dos 15% anuais. Isso certamente vai gerar demanda por indexação salarial, a ser feita por velhos companheiros do presidente Lula. Como reagirá ele? Pedindo mais paciência? Se pedir, será atendido? Ou cairemos de novo na espiral preços/salários, que só catapulta a inflação e não protege os salários? Eis aí o dilema de fundo: uma gestão economista realista, neste momento, contraria as expectativas de mudança. Será preciso muita liderança, capacidade política e habilidade de fazer coisas rapidamente para dissolver o dilema. Não é fácil, mas também não é impossível. De todo modo, o governo Lula será obrigado a avançar ainda mais na direção do centro, inclusive com novas alianças além das que foram feitas na campanha. Esse movimento, se feito, afastará os setores mais esquerdistas – como aconteceu em outros países. Ou é isso, ou é o retorno do velho e fracassado populismo. Lula e seus principais colaboradores têm dito que não é populismo e parecem sinceros. Mas terão demonstrar isso na prática, dia a dia. Como disse o próprio Lula, ele não pode errar.Dureza. Publicado em O Estado de S.Paulo, 28 de outubro de 2002

Deixe um comentário