BRASIL x EUA: UMA QUESTÃO DE DEDÃO

. Como torrar a paciência dos americanos Vamos imaginar a seguinte situação: o FBI descobriu que um perigoso terrorista embarcou dos EUA para o Brasil, bem naquela semana em que entrou em vigor a ordem para fichar todos os cidadãos americanos. Melhor ainda: o tal terrorista tinha um passaporte americano. O problema: o FBI não sabe qual vôo o sujeito tomou, nem se desembarcou no Rio ou em S.Paulo. Mas isso não é problema, diria uma autoridade diplomática brasileira, esfregando as mãos de satisfação. Não é que aquela medida – a tomada das digitais – considerada uma arbitrariedade, vai acabar funcionando ali onde os americanos mais se preocupam, na caça a um terrorista? Baita sorte, não é mesmo? Agora, é só apanhar as fichas, comparar fotos e digitais e pronto. O presidente Lula poderia até reivindicar um agradecimento do presidente Bush em seu próximo encontro. Tudo certo e simples, portanto? Mais ou menos, diria o pessoal da Polícia Federal. O senhor e a senhora sabem como é, a tomada de fotos e digitais não estava prevista, começou assim meio improvisada. A PF não tem aquela máquina moderna americana, na qual o sujeito coloca o dedão no foco e imediatamente se colhe foto e impressão digital, no mesmo arquivo eletrônico. A vantagem disso, além de simplificar o processo de identificação – coisa de 25 segundos – é facilitar a busca. No caso, a PF brasileira receberia por email a foto e as digitais do suposto terrorista. Bastaria então o funcionário introduzir em seu arquivo eletrônico, dar um enter no ícone “busca” e sair para apanhar uma Coca – quer dizer, Coca não, um café. Mas não é bem assim. As impressões digitais foram tomadas no processo manual nos aeroportos do Rio e S.Paulo. O cidadão molha os dedos na tinta preta e os pressiona numa fichinha de papel, na qual, é claro, é preciso escrever o nome do titular das digitais. A foto já é mais moderna, tomada numa câmara digital, mas operada manualmente pelo agente da PF. O fotografado escreve seu nome num papelão e o mostra para a câmera. Meio desagradável, mas enfim… a foto está lá arquivada no chip. E as digitais, nas fichinhas de papel, cada uma com o nome do fichado, guardadas em um daqueles arquivos de aço, lembram-se?. Digamos, então, que a PF recebeu da CIA o arquivo eletrônico com o que podem ser a foto e as digitais do suposto terrorista. Como comparar com os dados obtidos nos aeroportos do Rio e S.Paulo? É preciso compatibilizar os dois tipos de arquivos. Uma maneira é imprimir foto e digitais recebidas e compará-las com os dados obtidos por aqui. Primeiro, foto por foto. Pegar o chip da PF, passar para um computador, colocar ao lado a foto enviada pela CIA e examinar uma por uma. Mas o sujeito pode ter mudado a cara, o que certamente complica a coisa, porque não está disponível o sistema que faz comparações eletrônicas on line.   Passa-se então para as digitais. Mais complicado ainda: será preciso que vários técnicos comparem, no olho, a digital de cada fichinha de papel com aquela enviada pela CIA e que deve ter sido impressa numa boa impressora. Ou o contrário: transferir as digitais das fichinhas de papel para computadores equipados com poderosos sistemas de imagens, e então, sim, compará-las eletronicamente. Mas isso, se a PF tiver tais computadores disponíveis e se os nomes nas fichinhas de papel tiverem sido corretamente escritos e, sobretudo, se conseguiram combinar digital e nome. E mais, se as fichinhas foram todas guardadas e arquivadas em alguma ordem. Ou seja, a chance de se conseguir a identificação é zero. E se o agente da PF for cobrado, não é difícil imaginar a resposta: sabe como é, estava a maior confusão no aeroporto, um ou dois funcionários para fazer tudo, e ainda de improviso, o que queriam? Além disso, se o cara chegou pelo Rio, por exemplo, as fichas só foram feitas dias depois. Mas as fichas e fotos feitas estão em algum lugar, na dá para encontrá-las? Até daria, responderia o agente, mas já imaginou quanto esforço e quanta gente para recuperar tudo, colocar em ordem e fazer a pesquisa? Isso com a Operação Anaconda em andamento e tudo o mais? Tudo isso, porém, é imaginação. Na verdade, se o pessoal da PF recebesse a demanda de tal pesquisa, a resposta seria uma só: mas a identificação era a sério? Não era só para torrar a paciência dos americanos? E é a resposta certa. Foi um juiz que mandou fazer a identificação, é sabido, mas o governo federal não mexeu um dedo para derrubar tal decisão. Agora dizem que vão aperfeiçoar o sistema de identificação, mas, se fosse mesmo para valer, a questão seria: onde se deve gastar o dinheiro, no sistema de identificação de gringos nos aeroportos ou em identificação digital dos criminosos locais, coisa de que ainda não se dispõe? De todo modo, ainda que não seja uma fortuna, o governo está gastando tempo e dinheiro e ocupando funcionários nessa tarefa de torrar a paciência dos americanos, aí incluídos os cidadãos e o governo deles. O objetivo é livrar um grupo determinado de brasileiros, os que viajam aos EUA, da identificação quando chegam lá, ainda que esta seja rápida e sem manchar os dedos. Se o governo americano eliminar isso, estará ok? Mas e os interrogatórios mal-educados e as revistas invasivas que se fazem nos aeroportos dos EUA, todo mundo sendo obrigado a tirar os sapatos, por exemplo? Isso está em vigor há muito tempo e, pelo que se sabe, ninguém pensou em mandar todos os americanos tirarem os sapatos quando cheguem ao Brasil. Ou pensou? No outro lado, quais os custos para o Brasil de mais esse contencioso com os EUA? Tornar o Brasil mais difícil e mais chato para turistas e homens ou mulheres de negócios, além do próprio contencioso com o governo de Washington. Vale a pena? Também se pode dizer que há um objetivo mais amplo, o de mostrar ao governo de Bush que ele não pode sair pelo mundo fazendo o que bem entende. Mas se for isso, há um erro de objetivo e de meios. Primeiro, que os EUA, a única potência, podem fazer o que bem entendem. Pagarão um preço por cada ação, como estão pagando no Iraque e como estão pagando na perda de turismo pelas dificuldades de entrada, que eles consideram custo compatível com o combate ao terrorismo, mas ao menos por um bom tempo continuam fazendo o que lhes dá na telha. É fato. Vai daí que se deve tirar os sapatos e colocar o dedão na máquina sem chiar?  Certo que não, mas em vez de mandar os americanos “tocarem piano” quando chegam por aqui, talvez fosse o caso de tentar reagir e negociar em coisas mais úteis. Por exemplo, as normas anti-terror nos EUA não atingem apenas pessoas, mas impõem severos controles às importações de mercadorias. Isso é custo para todos os exportadores, inclusive os brasileiros. Parece que o Brasil está atrasado no cumprimento dessas normas – e eis aí um bom contencioso, embora mais difícil de tratar e menos vistoso para a mídia. Há muitos outros, como as barreiras sanitárias que os americanos impõem às importações de carne brasileira. Neste momento em que eles enfrentam problemas com a vaca-louca, talvez fosse um bom momento para entrar nesse assunto em posição mais favorável. E por aí vai. Mesmo que o objetivo diplomático seja o de torrar a paciência dos americanos, parece que há meios de fazer isso sem causar um custo para nós mesmos. Publicado em O Estado de S.Paulo, 12 de janeiro de 2004

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