. Capitalismo católico
João Paulo II ajudou a derrubar o comunismo, mas não estava satisfeito com o regime econômico vitorioso, o capitalismo, especialmente na sua versão globalizada. Resumindo, o papa sempre protestou contra a falta de ética na busca do lucro, o consumismo e as relações econômicas que, dizia, não privilegiam o emprego, nem sua justa remuneração. O arcebispo de São Paulo, cardeal dom Cláudio Humes, adere inteiramente a essa posição e vai além, incluindo nela a crítica ao neoliberalismo, para ele o culpado pelo desemprego e pela miséria mundiais, que considera crescentes.
É certamente por aí que dom Cláudio é definido como ?progressista nas questões sociais? pelos analistas que tentam adivinhar o perfil do novo papa, cuja eleição começa hoje. Não raro, ele é citado como o ?cardeal dos operários?, referência a seus tempos de bispo de Santo André, na região do ABC paulista, quando ajudou Lula, então iniciando sua carreira como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. Por outro lado, nas questões de fé e doutrina, dom Cláudio aparece como conservador, fiel seguidor de João Paulo II. Para alguns ?vaticanólogos?, essa seria uma combinação positiva para o novo papa. Para outros, o ideal para a Igreja seria exatamente o contrário, um papa menos conservador na doutrina ? abrindo espaço para questões como controle da natalidade e prevenção da aids pelo uso da camisinha ? e menos progressista nas questões econômicas e sociais.
Artigos do cardeal, publicados no Estado e recentemente reunidos no livro Diálogo Com a Cidade (Editora Paulus), confirmam sua posição progressista nos assuntos de economia e política. Já nas questões de fé e doutrina, especialmente quando vinculadas aos temas fortes do momento, incluindo, por exemplo, as pesquisas com células-tronco, dom Cláudio endossa a posição firme de João Paulo II, como não poderia deixar de fazer, mas se nota sempre um esforço de deixar alguma porta aberta para mais conversa e mais debate.
Em economia, política e sociedade, não há dúvida. Dom Cláudio é mais que progressista. Ele não seria um estranho na esquerda do PT e certamente está à vontade com o pessoal do Fórum Social e toda sua manifestação contra a globalização e o neoliberalismo. Para ele, o capitalismo (com propriedade privada, livre iniciativa e lucro) é algo assim como um mal inevitável nos dias de hoje. Mas é inequívoca a sua rejeição à base teórica e social desse regime.
Para ele, a empresa privada deve ?visar primeiro ao bem estar das pessoas, e não ao lucro. Este é também necessário para permitir realizar investimentos que garantam o futuro da empresa e a continuidade dos empregos. A empresa tem ainda responsabilidades ecológicas não desprezíveis?.
Não há uma referência sequer à remuneração do investidor e do acionista, ao prêmio que o capitalista deve receber por colocar seu capital em risco. Para dom Cláudio, a organização do trabalho e da produção deve ser de tal modo que garanta a ?primazia do trabalhador sobre o lucro?. O empregador, ?antes de mais nada deve remunerar segundo a justiça os seus trabalhadores?.
Ou seja, a empresa privada existe para dar emprego e salário justo. Se, depois disso, sobrar algo, então o empregador pode tirar daí seu lucro.
A propriedade privada é legítima, mas pesa sobre ela uma ?hipoteca social?, diz dom Cláudio, citando a doutrina da Igreja. Ou seja, a propriedade deve cumprir uma função social. Não fica bem claro o que é isso, mas não estará errado supor que é gerar emprego, salário justo e produzir coisas úteis para a sociedade.
Finalmente, o neoliberalismo e a globalização são considerados a causa do enorme desemprego e da pobreza que afeta países e povos excluídos. Para dom Cláudio, países e povos não são pobres porque estão fora do mercado global. São pobres porque o mercado os exclui.
O que se pode dizer dessas teses? Seriam mesmo progressistas? Talvez pudessem ser assim definidas quando fazia algum sentido a esquerda que se propunha a superar o capitalismo de algum modo ? pela reforma ou pela revolução ? e substituí-lo porque algum tipo de socialista. Capitalismo era o atraso, socialismo o futuro promissor.
Hoje, com a falência dos socialismos, rejeitados no mundo todo, exceto em Cuba e Coréia do Norte, mas inclusive na China, aquela crítica ao capitalismo revela um inconformismo com o momento histórico. Ok, o capitalismo venceu, mas o regime é intrinsecamente ruim. O que fazer? Colocar limites éticos e institucionais a seu funcionamento. Uma espécie de volta por trás, que levaria ao seguinte ponto: o regime é capitalista, mas o lucro é feio, moralmente duvidoso e a função da empresa é dar emprego e pagar salário justo, mesmo que para isso seja necessário sacrificar todo o lucro.
É evidente que isso não é capitalismo. A idéia central deste, ensinou Adam Smith, é que a busca dos interesses individuais leva ao bem estar coletivo. O açougueiro não monta seu negócio para distribuir carne e pagar bem a seus empregados. Ele quer fazer lucro e realizar seus interesses e só ficará no negócio se tiver certeza de que receberá a remuneração pelo seu capital e pela sua iniciativa. Idem para o padeiro e todos os demais ? e por isso temos açougues, padarias, fábricas e, claro, empregos.
O que dom Cláudio propõe é um capitalismo envergonhado e que, por isso mesmo, não funciona. Se os ensinamentos do cardeal forem seguidos, teremos uma economia travada, uma espécie de capitalismo em que a empresa privada, quando existe, é submetida a tantos controles e exigências, que não terá a menor condição de prosperar. Em vez de empregos e salários justos, haverá estagnação e pobreza. Já vimos isso.
Também não é verdade que a causa da miséria seja a globalização da economia de mercado. É o contrário. Não prosperam os países que, por alguma razão, inclusive decisões políticas equivocadas, ficam fora do mercado. Basta pensar num caso, a China. Quando iniciou sua arrancada para o crescimento, com a introdução do capitalismo, mais de 60% de sua população estava na pobreza. Hoje, 20%. A pobreza se reduziu no mundo globalizado em grande parte pela expansão econômica de China e Índia, ambas entrando no mercado global.
Sempre se soube que a Igreja Católica não se dava bem com o capitalismo e o lucro. Parece que isso continuará um problema para o novo papa. Publicado em O Estado de S.Paulo, 18 de abril de 2005