AS DIFICULDADES NA FORMAÇÃO DO GOVERNO LULA

. Confiança e esperança Luiz Inácio Lula da Silva continua ganhando a eleição. Na primeira pesquisa Ibope sobre as expectativas em relação ao próximo governo, no final de novembro, seus resultados foram ainda melhores que o das urnas de 27 de outubro. Para 67% dos entrevistados, a administração Lula será ótima ou boa. E nada menos que 73% acreditam que a vida dos brasileiros vai melhorar. Mas o dólar voltou a se aproximar dos R$ 3,80 no início de dezembro, aumentando os estragos já feitos na inflação e deteriorando as expectativas econômicas para 2003. Ora, inflação em alta piora a vida dos brasileiros, especialmente dos mais pobres. Subiram forte os preços de alimentos e as tarifas dos serviços públicos, itens que têm peso maior nos orçamentos das famílias de menor renda. Não se pode dizer que a alta do dólar – e as desgraças paralelas, como queda da Bolsa e elevação dos juros e do risco Brasil – reflitam alguma conspiração dos empresários e dos investidores (ou especuladores) contra o próximo governo. Na verdade, essa turma do capital vinha tratando de se entender com Lula e o PT ainda durante o processo eleitoral. Eis alguns números interessantes. A campanha de Lula arrecadou neste ano dez vezes mais do que em 1998. Metade das doações entrou no caixa petista em outubro, quando a fatura já estava liquidada e multiplicavam-se as reuniões de Lula com os diversos setores do empresariado, incluídos os banqueiros. E ainda caíram alguns trocados em novembro, depois de contados os votos. Como o próprio presidente eleito havia dito, os salões continuavam abertos mesmo para os que chegavam depois de ter começado a festa. Acrescente-se aí a grande revelação da equipe de transição, o médico sanitarista e ex-prefeito de Ribeirão Preto, Antonio Palocci, que adquiriu rapidamente a embocadura de ministro da Fazenda, e mais as declarações moderadas da cúpula petista – e pronto, começou a lua de mel. Números de novo: o dólar caiu em outubro e novembro; o risco Brasil, idem; a Bolsa, depois de uma queda espetacular em setembro, recuperou-se em outubro e novembro. Os juros subiram, é verdade, mas por causa de uma inflação que muita gente, então, considerava benigna. Marcou-se a visita de Lula aos Estados Unidos, o governo Bush liberou uma série de declarações amistosas à futura administração brasileira, de modo que muita gente passou a questionar: “o que é que tem um governo de esquerda com responsabilidade fiscal e monetária”? Na verdade, respondia-se, pode até ser melhor, pois o viés social dá respaldo popular. Por que, então, a desconfiança voltou rapidamente no início de dezembro? Pela dificuldade na montagem do ministério e, mais ainda, a dificuldade em se encontrar um presidente do Banco Central. E este cargo é essencial para o curto prazo. Um ministro da Fazenda pode fazer estragos. Mas demora algum tempo para se perceber, por exemplo, que as contas públicas pioraram. Já o presidente do BC pode estragar tudo de um dia para outro ou, vá lá, em uma semana, se errar na administração dessas coisas tão sensíveis como juros, câmbio e compra e venda de títulos. Claro, a coisa vale também para o bem. A ação correta de um ministro da Fazenda demora a surtir efeito. São precisos anos para se adquirir fama de responsabilidade fiscal. Já o presidente do BC pode conseguir quase instantaneamente grandes viradas positivas no humor do mercado. Às vezes nem precisa dizer nada. Exemplo: bastaria anunciar que Pedro Bodin seria o presidente do BC e, pode apostar, o mercado já amanheceria melhor. O nome do jogo é confiança. Eis o grande problema do início de dezembro: verificou-se que os profissionais que Lula cogitou para o BC não pegaram o emprego, por achar que não teriam segurança para executar o serviço. O que temiam? Que sua ação fosse seguidamente bombardeada pelo próprio PT, um eterno crítico da política de juros altos, em geral considerada uma maldade contra o povo e a favor dos especuladores. Ora, os economistas originalmente cogitados para o BC do governo Lula estavam entre os que defendem a alta de juros neste momento para combater uma inflação generalizada. Se esses economistas não se sentiram seguros para executar tais políticas, então Lula não conseguiu dar as garantias – tal foi o raciocínio que se fez. Situação particularmente grave em um momento de alta de inflação e, mais importante, de expectativas exacerbadas para 2003, exatamente porque não se sabia qual seria a meta de inflação e quem seria o presidente do BC encarregado de executá-la. E tem reunião do BC no próximo dia 17 para se decidir sobre a taxa de juros, sendo de todo conveniente que a próxima diretoria já esteja operando em conjunto. Não é uma crise terminal, é claro. Longe disso, muito longe, afinal o governo nem começou. Mas é certo que Lula precisará conceder garantias firmes para conseguir alguém de peso para o Banco Central. De todo modo, ocorreu, depois da lua de mel, o primeiro choque da realidade. Estava todo mundo muito amistoso com o presidente eleito, os aliados dizendo que não se importam com cargos, todos prontos a colaborar, mas na hora da negociação para valer apareceram as reivindicações e as recusas. É assim em qualquer governo, mas é mais difícil para Lula e para o PT, pelo noviciado e por outras circunstâncias reais. Uma é que o partido mudou muito e muito depressa. Não se vai do “Fora FMI” para a assinatura do acordo com o próprio como se fosse um passeio na praia num fim de tarde de verão. A outra, como notou o analista Christopher Garman, da Consultoria Tendências, é que os seis partidos da base de Lula juntam menos de 40% dos deputados e senadores. Partidos como o PSB, PDT e PPS são pequenos – em número de votos parlamentares – mas grandes na tradição de esquerda e de alianças com o PT. Assim, reclamam cargos com base nesta grandeza, o que pode ser correto, mas não ajuda na formação do governo. Para isto, pode ser necessário dar mais vagas ao PMDB de Sarney – mas é preciso contar com a compreensão dos velhos companheiros. Enfim, é a esperança submetida ao choque de realidade. Vai ser assim. Mais uma coisinha, só para lembrar: quando ganhou sua primeira eleição, Tony Blair anunciou a lei de autonomia do BC uma semana depois da vitória. Até pouco tempo, Blair era considerado muito liberal pelos petistas. Talvez seja o caso de rever isso, pelo menos no que se refere ao Banco Central. Publicado em O Estado de S.Paulo, 09/12/2002

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