ACERTANDO NO MACRO, ERRANDO NO MICRO

. Mancadas Então ficamos assim: o Brasil volta a crescer em 2004, um ano que pinta ser muito parecido com 2000, inclusive pelas circunstâncias. Nos dois casos, houve uma enorme desvalorização cambial (99 e 2003), causando inflação e a consequente política de arrocho monetário e fiscal para controlar os preços. Caiu a atividade econômica, debelou-se a crise inflacionária, o dólar aquietou-se e o país voltou a crescer. O Produto Interno Bruto aumentou 4,4% em 2000 e já tem analista exibindo contas segundo as quais o próximo ano pode dar pelo menos 4%. Tudo bem? O perigo é justamente a resposta “sim, tudo bem”. Isso levaria a um relaxamento orçamentário, como esperado pela parte do PT e de seus aliados que ainda não entendeu a política econômica do ministro Antonio Palocci. Para essa turma, assim que ficar claro que o país voltou a crescer sem ameaça inflacionária, a conversa passaria a ser a seguinte: fizemos o sacrifício para administrar a herança maldita, mas agora chega, chega de FMI, chega de aperto orçamentário, chega de combate à inflação, chega de queda moderada dos juros. É uma grave ameaça ao equilíbrio das contas públicas. O próprio presidente Lula dizia, há algum tempo, que neste ano não daria para gastar porque estava lidando com um orçamento herdado. De onde e conclui que no próximo . . . O presidente já não fala disso e o ministro Palocci acaba de avisar que o arrocho no gastos continua no ano que vem, pela simples e boa razão de que o dinheiro disponível continua curto em relação às enormes atribuições do governo e às ainda maiores demandas. Mas muita gente no governo e na base parlamentar, assim como governadores e prefeitos, continua embalada no sonho de que, passada a crise, é a hora de aumentar o gasto público. Querem uma ameaça concreta? Um substancial aumento real para o salário mínimo. O reajuste pífio deste ano também foi justificado com a tese da herança maldita. Pois quando chegar abril de 2004, hora de definir o mínimo, o país provavelmente estará no auge da recuperação, nadando de braçada, inclusive com ganhos de arrecadação em consequência de mais produção e vendas. Será difícil, nesse momento, sustentar a tese de Palocci de que o dinheiro público continua curto e continuará assim por muitos anos. Só que a tese é correta. Um aumento substancial do mínimo pode simplesmente anular os ganhos alcançados com a reforma da Previdência, pelo estouro imediato nas contas do INSS. Sem contar que um relaxamento com o mínimo será um sinal para o avanço nos demais gastos – e, pronto, em pouco tempo, estaríamos voltando a ambientes parecidos com 1999 ou 2002/03. Outro perigo seria a manutenção da política econômica atual (superávit primário das contas públicas, regime de metas de inflação), mas sem a sequência necessária, isto é, sem o conjunto de regras e medidas microeconômicas que estimulem os investimentos privados. Seria menos grave – porque não jogaria o país em nova crise – mas ainda assim um enorme problema porque não lançaria bases para um longo período de crescimento. Dando de barato que a reforma da Previdência será aprovada no Senado tal como saiu da Câmara – um considerável avanço – e que a tributária passará parcialmente, pelo menos na parte que garante o equilíbrio das contas públicas, resta para 2004 uma considerável agenda. Por exemplo: a finalização do novo modelo do setor elétrico; a institucionalização das Parcerias Público Privadas; o modelo para saneamento e construção civil; as regras para a construção, reforma e manutenção de rodovias, ferrovias e portos; os marcos ambientais. Tudo isso está em andamento, mas lento e em zigue-zague. Em diversos setores do governo permanece o ponto de vista de que a base de tudo estará nos investimentos públicos, dos governos e suas estatais. A propósito disso, muita gente dizia que ou não haveria novo acordo com o FMI ou que haveria mas estipulando novas regras que permitissem o aumento do investimento público. Pois saiu um acordo igualzinho aos anteriores. Livraram um dinheiro para o governo gastar em saneamento, mas o ministro Palocci disse que os limites de endividamento dos Estados e municípios continuam sendo respeitados. Ora, são exatamente esses limites que impedem novos investimentos: governos estaduais e prefeituras simplesmente não têm espaço para tomar financiamentos nem nos bancos oficiais, nem nos internacionais. Assim, sobra o investimento privado – e para isso é preciso definir regras e contratos claros e que sejam para valer. Isso ainda não aconteceu, pois parece que muita gente do governo continua não se confirmando com essa realidade. O outro risco ao ambiente de crescimento está nas seguidas mancadas administrativas do governo Lula e nos cada vez mais frequentes conflitos entre a Fazenda e todo o resto do governo. Conta uma fonte da Fazenda que a grande moda do governo, neste momento, é inventar fundos de natureza contábil para fazer o que o orçamento não comporta. Estão em discussão por Grupos de Trabalho de Alto Nível o "Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social", O "Fundo de Promoção da Igualdade Racial", o Super-FUNDEB, e por aí vai… A coisa funciona assim: os ministros propõem o fundo, a Casa Civil distribui, a Fazenda dá parecer contrário, e, ao invés de enterrar o assunto, cria-se um Grupo de Trabalho. A Fazenda e Palocci têm levado todas. E continuam avançando. Já está no site da Fazenda o documento “Gasto Social do Governo Central”, que, com enorme competência e dados criteriosos, contraria teses clássicas da esquerda antiga. Diz que os gastos sociais são elevados no Brasil, mas se dirigem mais, proporcionalmente, aos mais ricos. Que o problema, portanto, não é gastar mais, mas melhorar a qualidade do gasto. Vai dar outra polêmica interna. E, nos meios econômicos, fica sempre o temor: e se a Fazenda perder? Resumo da ópera: a política macroeconômica salvou o país e garantiu pelo menos um ano de crescimento; com sorte, mais um; e com uma sorte enorme, que nos livre de problemas externos, mais dois anos. Para sustentar esse ambiente, é preciso que o governo se livre da tentação de cair na farra do dinheiro público e comece o penoso e chato trabalho de administrar o micro, o dia a dia, com competência. Publicado em O Estado de S.Paulo, 17 de novembro de 2003

Deixe um comentário