A MINI-REFORMA TRIBUTÁRIA

. O empurrão veio de fora Eis aqui um resultado – e bom – do debate eleitoral: a Medida Provisória número 66, editada em 30 de agosto e já conhecida como a minirreforma tributária. Elimina um dos impostos em cascata – a contribuição para o Programa de Integração, PIS – facilita e barateia a atividade dos exportadores, concede benefício fiscal às empresas que investem em inovação tecnológica e cria um prêmio para empresas que estão em dia com o fisco. Excetuado o prêmio – uma novidade – as demais medidas estavam na agenda da reforma tributária desde sempre. Mas não avançavam no Congresso por falta de condições políticas, especificamente a dificuldade de se formar maioria em assunto tão complexo e com tantos interesses em jogo. Essas condições surgiram na campanha: de tanto os candidatos presidenciais falarem em reforma tributária para reduzir o custo de produção e de exportação, o governo Fernando Henrique, embora a quatro meses do final, sentiu respaldo para avançar com a idéia. Mas teve de fazê-lo com uma medida provisória pois o Congresso, mais uma vez, não conseguiu votar o projeto ainda que este contasse com o apoio dos principais candidatos presidenciais. Um dos problemas foi a tentativa de carona, o que sempre acontece nesse tema. Lobies variados tentaram aproveitar a urgência para extrair algumas vantagens, como anistias e novo prazo para empresas inadimplentes se acertarem com a Receita. O governo brecou a manobra e o projeto caiu naquele limbo, nem aprova, nem desaprova. Outro problema foi o esforço do lobby de eventuais perdedores – como o agronegócio e o setor de serviços – para bloquear tudo enquanto não se resolvesse seu caso particular. Por sinal, um desses lobies levou. Na edição da MP foi atendida a reclamação do agronegócio, que escapou de um aumento de carga tributária. Já o setor de serviços dançou: vai pagar mais impostos. De modo que a história toda revela, mais uma vez, que a reforma tributária é tão desejada quanto difícil de alcançar. O ponto central é que os governos (federal, estaduais e municipais) não podem perder receita sob pena de desarranjar as contas públicas. Por que não cortam despesas? Porque é tão difícil quanto fazer a reforma tributária. Os orçamentos são engessados com gastos obrigatórios, cuja eliminação depende de complexas medidas legislativas, incluindo emendas constitucionais. E se os governos não podem perder receita, pelo menos no médio prazo, o jogo exige vencedores e perdedores. Se a idéia é desonerar a exportação, por exemplo, então a perda de receita aí terá de ser compensada com a elevação de impostos para um outro pato. O PIS era uma contribuição de 0,65% sobre o faturamento, cobrada em cascata em todas as etapas do ciclo produtivo. Considere um automóvel. O fabricante de bancos produziu, faturou, morreu com o PIS. Idem para os pneus, radiador, cilindros, rádio etc. – todo mundo pagando 0,65% e embutindo no preço. Nas cadeias produtivas mais longas, calculava-se que o peso dessa contribuição poderia chegar a 10% do custo. A partir de 1o de dezembro, o PIS passa para 1,65%, mas se torna um imposto sobre valor agregado, de tal modo que o tributo pago em uma etapa da produção é descontado na fase seguinte. Ou seja, o carro paga 1,65%, mas desconta o que foi pago no banco, nos pneus, etc. Não é mais cumulativo, é como se fosse cobrado uma única vez. Reduz custos fiscais na indústria e especialmente na exportação de produtos manufaturados. Já para o setor de serviços, como o fornecimento de energia e telefones, a minirreforma significa simplesmente um aumento da alíquota do PIS de um ponto percentual. Vai pagar o 1,65% integralmente.Como nessas atividades não há uma propriamente uma cadeia produtiva, o fornecedor do serviço não tem fase anterior de quem descontar o tributo.   O agronegócio também ia pagar, conforme a versão original do projeto de lei que empacou. Mas a MP criou um sistema diferenciado para esse setor, sem aumento da carga, dado o óbvio poder desse lobby no Congresso. A conta, portanto, vai para o consumidor de energia e telefones, que, aliás, já paga uma carga brutal de imposto estadual (o ICMS) e agora vai aumentar sua contribuição para o fisco federal. Mas como a MP ainda precisa ser apreciada pelo Congresso, aguardam-se novas batalhas. Pela nova regra, a MP que não for votada, caduca e não pode mais ser reeditada, de modo que existe o risco da minirreforma tributária morrer antes de entrar em vigor. E com isso voltamos à política. Se o debate eleitoral criou as condições para esse começo de mudanças tributárias, o presidente que resultar eleito já em novembro terá de estar cuidando de sua votação no Congresso. De todo modo, foi um passo importante. Pela direção e pelo estilo. Tocou em um ponto fundamental, os impostos cumulativos, unanimemente considerados uma fonte de distorção, e foi um passo curto. Abandonou-se a pretensão de uma ampla reforma feita de uma só vez. Qualquer projeto neste sentido abre um tamanho leque de competição (entre os três níveis de governo e os diversos setores econômicos) e cai fatalmente no impasse. Em particular, a idéia do candidato Luís Inácio Lula da Silva de reunir todo mundo para negociar a reforma não leva a um projeto, mas a um impasse universal. A reforma tributária somente será feita se for uma coisinha de cada vez. Como se fez agora. Em dezembro próximo, cai a cumulatividade do PIS. Se vê como funciona e no ano que vem, até 31 de dezembro, o governo federal, conforme previsto na MP 66, deve enviar projeto de lei eliminando a cumulatividade da Cofins. E assim vai. E se o novo presidente desistir? Pois vai pagar caro: ficará sem o dinheiro do FMI. Isso mesmo. De maneira totalmente inédita, o último acordo com o Fundo incluiu como “critério de desempenho estrutural” justamente essa minirreforma da MP 66, especialmente o fim da cumulatividade, uma antiga crítica do FMI ao sistema tributário brasileiro. Critério de desempenho é obrigatório e seu cumprimento verificado a cada três meses. Se não for cumprido, o FMI suspende o desembolso do financiamento. Mas o compromisso aqui é curioso. O acordo diz que o governo federal precisa enviar os projetos ao Congresso (inclusive o referente à Cofins) e empenhar-se pela sua aprovação. Isso cumpre o critério de desempenho. Se o Congresso eventualmente rejeitar tudo, paciência. O Executivo, signatário do acordo com o Fundo, não pode se responsabilizar pelas decisões de um outro poder. Pode apenas continuar tentando, insistir no tema, reenviar os projetos e, com isso, de novo, o critério estará cumprido. É óbvio, entretanto, que a exigência formal de reforma faz pressão. É um forte estímulo para levar o Congresso a fugir do impasse e votá-la definitivamente. Esse constrangimento externo não é ruim. Muitos países europeus só acertaram suas contas públicas quando isso se tornou uma exigência nos tratados internacionais para a formação da União Européia. Aqui entre nós, o Congresso só começou a votar as reformas do Estado (como a previdenciária) quando isso se tornou condição para o pacote de ajuda do FMI de 1998. Trata-se de pressão externa contra impasses internos. Eis aí. No apagar das luzes, o governo FHC pelo menos começa a pagar uma das faturas que mais lhe foi cobrada. Além da alteração imediata no PIS e futura na Cofins, a minirreforma resolve um antigo problema dos exportadores. Eles eram isentos de IPI, mas os insumos que compravam vinham com o imposto. Os exportadores então se creditavam para receber o imposto de volta. Mas frequentemente surgia um acúmulo tão grande desses créditos tributários que o exportador não conseguia recebê-los. Com a minirreforma, quem vende para empresa que exporta mais de 80% de sua produção não paga mais o IPI. Há um forte benefício para as empresas que fazem inovação tecnológica – o investimento pode ser totalmente abatido do IR e da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Isso já está valendo.Por outro lado, a alíquota da CSLL, que cairia para 8%, ficará nos 9%. Mas empresa que estiver em dia com o fisco nos últimos cinco anos pagará 8%. Trata-se de uma novidade, um bônus que, segundo o secretário da Receita Federal, é simplesmente inédito no mundo. E por falar no secretário, ele finalmente conseguiu emplacar uma medida que tentava há tempos e que provoca calafrios nos tributaristas e constitucionalistas. Trata-se de norma pela qual a Receita pode mandar uma empresa desfazer uma operação de planejamento tributário mesmo que esta tenha sido legal. Mas isso com certeza vai acabar sendo questionado no Supremo Tribunal Federal. Publicado na revista Exame, edição 775, data de capa 18 de setembro 2002

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