Nem a Constituição pegou
Carlos Alberto Sardenberg
Considerando que muitas leis não pegam no Brasil, pessoas de boa fé, dentro e fora do sistema político, entenderam, ao longo de décadas, que normas realmente importantes deveriam ser gravadas na Constituição. Assim foi feito – e por isso a nossa Carta Magna é tão extensa. E tão descumprida e emendada.
Está acontecendo de novo.
Em 15 de dezembro de 2016, governo Temer, foi sancionada a Emenda Constitucional número 95. Estabelecia um novo regime fiscal, baseado na novíssima regra do teto de gastos. Por esta, se determinava que a despesa do governo federal em um determinado ano seria igual à do ano anterior mais a inflação. Vigência: até 2036.
Ideia boa: com isso, o gasto público permaneceria constante em termos reais. Com o esperado crescimento do país, o setor público teria seu (excessivo) peso reduzido em relação ao setor privado. As contas do governo seriam colocadas em rota de equilíbrio – o tão falado equilíbrio fiscal – reduzindo-se déficits e dívida pública.
Mas esses eram exatamente os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, legislação infra-constitucional, sancionada em 4 de maio de 2000, na gestão FHC. Parte importante da consolidação do Real, a norma determinava que o orçamento do governo federal deveria ter metas explícitas de receitas e despesas, prevendo-se superávit primário de modo a que sobrassem recursos para a amortização progressiva da dívida pública.
Para espanto de muitos, a regra funcionou corretamente durante muitos anos. Na primeira gestão de Lula – para espanto de muito mais gente – o governo federal produziu superavits enormes, de até 4,5% do PIB, colocando a dívida em queda e, assim, garantindo o ajuste fiscal.
No segundo mandato, Lula começou a retomar a expansão do gasto público. A economia mundial ajudava, o governo tinha mais dinheiro. De todo modo, a regra básica da LRF foi mantida.
Dilma estragou tudo. Baseada na tese de que o gasto público tinha poderes universais – servia para melhorar tudo – a presidente inventou as pedaladas fiscais para aumentar a despesa em termos reais, fingindo manter a meta de superávit.
Teria sido melhor se tivesse proposto Emenda Constitucional para mudar o regime fiscal. Melhor no sentido de que colocaria a questão em debate aberto. Mas como isso poderia pega mal e gerar crises de confiança, Dilma optou pelos truques – como o de espetar despesas do governo federal na Caixa e no Banco do Brasil.
Conhecem o resultado. Déficits, dívida, juros mais altos, inflação, recessão.
Vem o governo Temer com o objetivo de restaurar o equilíbrio fiscal. Como a LRF não pegara, optou-se pela Emenda Constitucional, aquela de número 95.
Ingênuos pensaram: agora ninguém mais rasga.
Rasgaram. E não foi o PT, mas um governo que se apresentara como anti-petista, com o apoio do Centrão, súcia de partidos e blocos parlamentares, cuja vida política está centrada no gasto de dinheiro público conforme seus interesses eleitorais.
Assim chegamos à PEC Kamikase, uma proposta de emenda constitucional para burlar a Constituição e permitir que o governo federal gaste fora do teto.
Eis o país de novo no ambiente do desequilíbrio das contas públicas, com mesmas consequências de antes. Por exemplo: o dólar caro, fonte adicional de inflação.
E sabem o que mais impressiona? A ampla maioria a favor da PEC, incluindo as oposições variadas. Mais ainda: o candidato favorito, Lula diz que esse negócio de teto de gasto é uma furada, coisa do mercado financeiro. Aliás, prometia acabar com o teto. Não precisa mais. Bolsonaro e o Centrão já fizeram o serviço.
Assim, os dois principais candidatos e a maioria do Congresso, que deve ser reeleita, anunciam que vão se fartar no gasto público. Como cada setor do eleitorado acha que será especialmente beneficiado com esse gasto, a farra fiscal está garantida.
As consequências também, e de novo: inflação, juros altos, baixo crescimento econômico.
Considerando que a emenda constitucional do teto de gastos não pegou, a que outra legislação se poderia recorrer?
Biblia, talvez?