Pela democracia
Carlos Alberto Sardenberg
Pouco antes da invasão da Ucrânia, mas com o ambiente geopolítico já bastante tenso, setores da esquerda e da direita sustentavam que era tudo culpa dos Estados Unidos. A tese: como líder da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, os EUA teriam levado essa aliança militar a avançar sobre o leste europeu, como que ocupando países que haviam estado na órbita soviética. Esse movimento seria uma ameaça à integridade territorial da Rússia, aqui vista como a sucessora da União Soviética.
Lula partilha dessa tese, conforme deixou claro na entrevista à revista Time. Para ele, o presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, também é responsável pela guerra por não ter adiado a discussão sobre a entrada na OTAN.
Ou seja, Putin é responsável pela invasão, mas …. e cabe um monte de coisa nessa adversativa, cujo final é jogar a culpa nos EUA, na União Europeia e em Zelensky.
Um festival de equívocos. Começa que a Rússia não é a sucessora da União Soviética. Esta tinha uma doutrina, partilhada por partidos comunistas de muitos países. Deu errado, é verdade, mas o regime funcionou por quase 50 anos.
A Rússia de hoje é o que? Uma ditadura, como na era soviética, mas sem nenhuma doutrina a não ser a reverência a Putin e o assalto ao Estado promovido por ele e seus aliados. Putin fala nos valores da Grande Rússia, em oposição aos “valores decadentes” do Ocidente.
Os valores do Ocidente são a democracia, a liberdade individual, a liberdade de imprensa e o capitalismo com predominância do empreendedor privado. E não estão decadentes, como se viu com a formidável reação ocidental à invasão e às barbaridades praticadas por Putin.
A população da Ucrânia praticou esses valores com a eleição de Zelensky e a decisão, também tomada no voto, de entrar na União Europeia e na OTAN. Exatamente como fizeram outros países do Leste. Não foi a aliança militar que avançou sobre o Leste. Os países que escaparam da órbita soviética tomaram decisões soberanas de se juntarem ao lado ocidental.
Reparem: a OTAN não deu um tiro sequer quando da queda do muro de Berlim. E não fez qualquer ameaça aos países ex-soviéticos.
Essas nações fizeram aquele movimento por dois motivos principais. Primeiro, partilhar do progresso e do desenvolvimento econômico e social da União Europeia. Segundo, obter a proteção da OTAN justamente contra as ameaças do imperialismo russo.
Como se vê agora, tinham toda razão. A Ucrânia deu azar. Levou tempo para se livrar de uma ditadura, de modo que o governo democrático de Zelensky não teve prazo para consolidar a aliança com o Ocidente. Putin antecipou a invasão.
Hoje, quem está ao lado de Putin? Ditadores já estabelecidos no poder e aspirantes a ditador, como o presidente Bolsonaro.
E por que a esquerda, se não apoia Putin, é tão tolerante com ele, a ponto de achar que a vítima, a Ucrânia, também é responsável pela guerra? Trata-se de uma posição infantil anti-EUA e anti-Europa ocidental, como se ainda fosse tempo da guerra fria.
Cobram de Zelensky que abra mão da União Europeia e da OTAN – ou seja que derrube decisões tomadas pela população.
Cobram de Zelensky uma abertura às negociações. Mas quem não negocia é Putin, cuja exigência é transformar a Ucrânia em um satélite russo. A resistência das tropas e da população ucranianas mostra bem que essa não é uma opção.
Não se sabe como terminará a guerra. A Rússia limitou suas operações e a Ucrânia, ao contrário, reforçou sua capacidade de resistência com armas recebidas de países da OTAN. Já não se considera impossível que as tropas ucranianas ponham as russas em retirada.
De todo modo, não se trata de uma disputa entre capitalismo e socialismo. Nem se trata, por exemplo, de uma guerra por petróleo.
São valores que estão em jogo. Ditaduras de um lado, democracias de outro.