A gambiarra do calote
Carlos Alberto Sardenberg
Essa história de “PEC dos precatórios/espaço fiscal”, tema que tem dominado o noticiário político e econômico, pode ser assim resumida:
1. o governo federal tem que pagar dívidas, determinadas pela Justiça, no valor de R$ 89 bilhões no ano que vem; são os precatórios;
2. Alguém teve uma ideia “genial”: e se o governo não pagar? E concluiu: sobram aqueles R$ 89 bilhões para gastar em outras coisas; é o espaço fiscal.
3. Abre-se a disputa no Executivo, no Congresso, entre lobistas diversos para a ocupação daquele espaço; ou seja, quem leva o dinheiro; é a verdadeira briga deste momento.
4. Ocorre que a regra constitucional ordena o pagamento dos precatórios; mas, outra ideia “genial”, pode-se mudar a regra com uma Proposta de Emenda Constitucional – eis a PEC , cuja primeira versão já foi aprovada na Câmara dos Deputados e circula agora pelo Senado.
Sim, é simples assim. Mais ou menos como se você tivesse que pagar no próximo ano R$ 50 mil em prestações da casa própria. Aí, você especula: e se não pagar? E esfrega as mãos: sobram 50 mil para torrar nas férias.
Como no seu caso, a dívida do governo também não desaparece. Simplesmente não terá sido paga no vencimento. Logo, é um calote. Daí o apelido, correto, de “PEC do calote”.
Os defensores da ideia de não pagar – que estão em toda parte, no governo e nas oposições e entre os que apenas querem um naco – dizem que não se trata de um calote, mas de um simples adiamento.
Mesmo? Se você não pagar a prestação da casa própria no ano que vem, o banco vai considerá-lo caloteiro, com direito. Vale também para o governo. Pense na pessoa que entrou na Justiça contra o governo, reclamando de uma diferença na sua aposentadoria, por exemplo, e esperou anos para enfim ter uma decisão em última instância a seu favor. O precatório foi emitido e enviado ao Ministério da Economia. A pessoa entrou na fila de 2022. Aí vem uma PEC para abrir espaço fiscal, ou seja, para gastar com outras pessoas, como os funcionários públicos para os quais o presidente Bolsonaro quer dar um reajuste. Ou para os deputados e senadores gastarem em emendas, enviando dinheiro público para qualquer coisa a ser feita nas suas bases eleitorais.
Mas, dizem, o espaço será utilizado também para um fim nobre: pagar o Auxílio Brasil aos mais pobres. Ocorre que já está bem demonstrado, por fontes de primeira, como o Instituto Fiscal Independente, que se pode arranjar dinheiro para o Auxílio sem dar calote nos outros. Os outros são pessoas, empresas, governos regionais, e instituições diversas que acionaram o governo e ganharam. Com sorte, entram na fila para 2023, dependendo, é claro, do governo eleito em 2022.
Logo, além de todo barulho político, haverá judicialização. Os credores certamente vão recorrer. E assim, processos que já ocuparam os tribunais durante muitos anos e foram concluídos – caramba! – voltam a tramitar no Supremo Tribunal Federal, pois se trata de questão constitucional.
Nada disso ocorre por acaso. Decorre de uma cultura política e econômica segundo a qual não há limites para o gasto público. O governo pode gastar e pronto.
Uma tentativa de barrar essa rota para o calote foi a introdução do teto de gastos, por emenda constitucional. Diz que o gasto de um ano é igual ao do ano anterior, mais a inflação. Parece simples – e é.
Mas no ambiente político, essa regra virou um estorvo – daí as manobras para driblá-la. Por exemplo: o governo paga os precatórios no ano que vem, mas o valor não é considerado para o teto de gasto. Assim, o governo paga os R$ 89 bilhões dos precatórios, extra-teto, e tem mais um espaço de 89 bi para gastar dentro do teto. Dobra-se a despesa! Daí o outro apelido – PEC dos fura-teto.
Tudo considerado, chamando as coisas pelo nome certo, fica assim: PEC dos precatórios é gambiarra; abrir espaço fiscal é dar calote; ocupar o espaço é decidir quem vai receber e que vai levar o cano. Tudo se resume a isso. E a Justiça que se vire depois.