NÃO TEM NADA DE MAIS . . .

–Para voar no helicóptero da PM, Sarney é autoridade para esconder quanto ganha dos cofres públicos, é cidadão comum—

Nossa série ?Não tem nada de mais? recebeu colaboração notável do senador José Sarney. Flagrado em um helicóptero da PM do Maranhão ? aparelho comprado para transporte de doentes e feridos ? e na companhia de um empreiteiro que tem negócios com o governo maranhense, fazendo um vôo de São Luís para sua ilha particular, em fim de semana, Sarney reagiu conforme o figurino da série: por ser chefe de poder, tem direito ?a segurança e transporte de representação em todo o território nacional?, em qualquer circunstância, mesmo a lazer.
Ou seja: não tem nada de mais.
Mas considerando que Sarney representa um poder federal e que o helicóptero é estadual e não destinado ?transporte de representação?, ou seja, não é para dar carona a autoridades, não haveria aí algo errado ou ao menos estranho?
Não, argumenta o senador, pois viajou a ?convite? de autoridade estadual máxima, a governadora do Maranhão. A circunstância fato de a governadora ser sua filha, Roseana, tudo bem?
Resposta: qual o problema?
Pois vamos imaginar um problema. Suponha, caro leitor, que um presidente do Senado ? não o Sarney, claro, que não é disso ? resolva patrocinar, digamos, uma festinha com amigos e amigas numa mansão de praia e peça ?transporte de representação? ao governador local, que coloca à disposição um avião da PM.
Pode?
O simples bom senso e o mínimo de ética dizem que não, não pode. Este caso imaginado está no limite, mas é exatamente a mesma situação da viagem real de Sarney. Ele não ia à farra, mas a descanso. Ok, mas continua sendo lazer absolutamente pessoal e privado. Estava levando não uma turma, mas só um convidado, certo. Ocorre que o cidadão, o empreiteiro, não tem direito legal a ?transporte de representação? e, pela ética, nem devia receber a hospitalidade do senador, por haver um claro conflito de interesses.
Alguém da turma do ?Não tem nada de mais? poderia argumentar que o empreiteiro tem negócios com o governo estadual, não com o Senado. Mas o helicóptero era estadual. Além disso, como disse o senador, os dois estavam ali a ?convite? da governadora que, aliás, é herdeira da tal ilha.
Poderiam também argumentar que o presidente do Senado precisa de segurança. Mas ali? Ele? Um segurança do Senado para carregar as malas já dava conta do serviço, não é mesmo? Quem precisa de segurança é juíza que condena bandidos perigosos, não chefe de poder que distribui benesses como os super-salários no Senado.
Em resumo, não existe a menor possibilidade de se justificar com um mínimo de lógica e decência a viagem do senador e seu amigo.
Só cabe mesmo a resposta do vice-líder do governo Roseana Sarney na Assembléia Legislativa do Maranhão, o deputado estadual Magno Bacelar (PV): “Queria que o presidente do Senado fosse andar de jumento? Enfrentar um engarrafamento? Esse helicóptero, é claro, tem que servir os doentes. Mas tem que servir as autoridades, esta é a realidade.”
Perfeito. O deputado leva, até aqui, o título de campeão nacional do ?Não tem nada de mais?. O ex-presidente Lula concorre por fora, com a justificativa, digamos teórica. Ele disse, – lembram-se? – que Sarney, pela sua biografia, ?não pode ser tratado como uma pessoa comum?.
Para registrar parte da biografia: a família Sarney, que controla o Maranhão há décadas, vai muito bem, obrigado. Quantos brasileiros têm ilha particular? Quanto ao Maranhão, disputa o título de mais miserável do país.
?Para o bem do povo?
O presidente do Tribunal Regional Federal, da primeira região (Brasília), Olindo Menezes inaugurou uma versão paralela do ?Não tem nada de mais?.
O caso é simples. A lei determina que nenhum funcionário público pode ganhar mais que o salário de um juiz da Suprema Corte, uns R$ 26 mil.
Cerca de 700 funcionários passavam do teto e tiveram seus vencimentos reduzidos, por ordem judicial. A mesa diretora do Senado, presidida por Sarney, recorreu ao juiz Menezes, que mandou a Casa voltar a pagar os chamados super-salários.
Entre outros motivos, disse que o corte dos salários ?atenta contra a ordem pública?, pois coloca ?de joelhos o normal funcionamento? do Senado.
O que quer dizer isso? Que os funcionários não trabalhariam mais caso a decisão judicial não os favorecesse? Eles não podem fazer isso. E mesmo que fizessem, de onde o juiz tirou que o Senado pararia?
Os funcionários envolvidos certamente têm o direito de discutir o caso na Justiça. Mas a mesa do Senado não deveria ir à Justiça contra uma lei aprovada ali mesmo.
Tudo, porém, fica mais fácil de entender quando se sabe que muitos senadores passa, do teto salarial, inclusive Sarney, possivelmente com mais de R$ 60 mil mensais.
Quanto ganha exatamente o presidente do Senado? O site Congresso em Foco perguntou diretamente a ele. Sarney respondeu que não diria, ?resguardado pelo direito constitucional à privacidade sobre os meus vencimentos, que tenho como qualquer cidadão brasileiro?.
Repararam? Para voar no helicóptero da PM, é autoridade, uma pessoa não comum. Para esconder quanto ganha dos cofres públicos, é cidadão qualquer.

Publicado em O Globo, 25 de agosto de 2011

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