. —– Cassinos financeiros produzem mais do que copos —
Hoje está fácil bater no sistema financeiro global que, segundo o presidente Lula, sugou lucros ?sem produzir nem um copo? e agora envolve na crise países inocentes, como o Brasil. É o argumento de outros líderes mundiais. Tudo se passa como se o sistema financeiro fosse uma coisa à parte, movido a ambições e que só se conecta com a economia real quando é para espalhar prejuízos. Mas se fosse algo assim tão separado, como poderia causar tanto dano na hora da crise?
Na verdade, toda a fase de prosperidade global dos últimos 25 anos, de crescimento forte embora entrecortado por crises localizadas e curtas, dependeu essencialmente do sistema financeiro. Uma característica central desse período foi a existência de capital abundante e barato.
Para que serve o sistema? Para captar poupança e distribuí-la onde há demanda por investimentos e consumo. Isso foi feito. Nos EUA, por exemplo, o crédito concedido a pessoas e empresas vem crescendo na base de 9% ao ano ? e isso desde os anos 50!
A tecnologia da informação ? computadores e telecomunicações ? permitiu inovações financeiras extraordinárias. Estas, de sua vez, apoiaram o aparecimento de novos negócios, como todos aqueles ligados à Internet. Lembram-se? Os inventores do Google encontraram capital barato para concretizar suas idéias.
Outro dado, também dos EUA. O crédito concedido às famílias saltou de um valor equivalente a 80% da renda, em 1986, para 140% vinte anos depois. Pode-se dizer hoje: uma farra do crédito.
Tudo bem, mas quando estava ocorrendo, essa farra movimentou o consumo e, pois, a produção e, pois, os empregos. Resumindo: as finanças modernas aumentaram o acesso ao crédito, democratizaram.
O Brasil participou da festa, mas atrasado. Depois das crises dos anos 70, o mundo voltou a se ajeitar já na década seguinte. Nos anos 80, praticamente todos os países importantes resolveram a questão da inflação, que havia sido um flagelo mesmo para os desenvolvidos.
Nesse período, boa parte do mundo já praticava o hoje amaldiçoado ?Consenso de Washington?. O que preconizava? Em resumo, que não pode ter inflação, que as contas públicas precisam ser equilibradas, idem para as contas externas, com limites para os déficits, que a taxa de câmbio deve ser flutuante, deve haver liberdade de circulação de capitais (o ponto mais polêmico) e que privatizações são uma coisa boa. Em resumo, um modelo de estabilidade macroeconômica, que se espalhou por toda parte.
O Brasil começou a definir esse modelo, de maneira mais vigorosa, com a introdução do real, em 1994. Ao final do governo FHC, estava já bastante consolidado. E, para surpresa geral, acabou sendo reforçado pelo presidente Lula, que aperfeiçoou ainda mais a independência do Banco Central e aumentou o superávit primário.
Conquistada a estabilidade macroeconômica, o Brasil pode então participar da farra dos capitais baratos. Alguns dados: em 2007, empresas aqui instaladas captaram a espantosa cifra de R$ 33 bilhões com a emissão primária de ações na Bovespa. As emissões de debêntures e notas promissórias alcançaram R$ 75 bilhões em 2006 e mais R$ 56 bilhões em 2007.
Essa capital financiou negócios aqui, de usinas de açúcar e álcool a produção de carne e de energia elétrica e exploração de petróleo. Financiou também a privatização de estradas e hidrelétricas feitas no governo Lula. E a maior parte desse capital veio do exterior, lá dos cassinos financeiros.
Produziram mais do que copos.
De 2003 para cá, as exportações brasileiras decolaram, puxadas pelo extraordinário crescimento da economia mundial. De novo, companhias brasileiras tiveram amplo acesso a capital barato para financiar suas operações comerciais. Reparem: nada menos que 85% do comércio mundial funciona movido a financiamento.
É justamente por isso que o colapso financeiro atrapalha tanto a economia real. De repente, falta um componente essencial dos negócios. É assim que a crise está chegando ao Brasil.
Pelo lado do crédito ? aqueles capitais antes abundantes e baratos, estão escassos e caros.
Pelo lado do comércio ? a falta de crédito reduz a expansão do comércio internacional, o que atinge as exportações brasileiras.
Ainda bem que o Brasil aproveitou esses anos para construir a estabilidade macroeconômica e, sobretudo, para acumular as reservas, hoje um seguro contra a falta de dólares.
Claro, não é preciso dizer que as estruturas globais degringolaram em alguns pontos. O sistema financeiro cresceu demais, acabou absorvendo a maior parte dos lucros e montou um sistema de avaliação de riscos que não viu nada.
Agora, é preciso consertar tudo isso. Mas todo esse artigo tem o propósito de mostrar que não se pode definir uma regulação tão estreita que bloqueie as atividades do sistema financeiro. Restringi-lo demais é, simplesmente, restringir as possibilidades de retomada do crescimento econômico.
E para quem acha que o problema todo foi a falta de controle estatal sobre os bancos, é preciso verificar que na origem de tudo está uma interferência política estatal.
Lá atrás, o então presidente Clinton estimulou as agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac a ampliarem os empréstimos para a compra da casa própria. Governo e Congresso forçaram um relaxamento nos critérios para a concessão de crédito e para o financiamento de hipotecas.
O objetivo era social: ampliar o acesso à casa própria. Ampliaram, mas tudo passou dos limites.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 10 de novembro de 2008