O MARRETEIRO

. Como aproveitar esses empreendedores? —

Tomo um táxi em S.Paulo, carro novinho em folha, com GPS, motorista educado. Congestionamento, conversa vai, conversa vem, ele me conta que estava há pouco tempo com o táxi, ia bem, mas bom mesmo era o negócio que ele tinha antes e que ?dona Marta acabou?. Qual?
– Eu era marreteiro, vendia vale transporte.
Resumo, ele comprava vale transporte, no tíquete de papel, a R$ 1,70, vendia a R$ 2,00, para uma passagem de ônibus que custava 2,30.
O mercado se formou porque a lei determina a concessão do benefício a todos os empregados com carteira assinada. Muitos não o utilizavam, nem tinham para quem dar, de modo que havia uma oferta. A demanda era óbvia, todo mundo que pegava ônibus e, especialmente, que não tinha carteira assinada.
O negociante precisava de boas conexões para alcançar quem tinha os vales de sobra e um bom local para vendê-los. No caso do nosso taxista, uma boa banca em um local de enorme movimento de passageiros, a estação Itaquera do metrô.
Pergunto: mas como você se instala? Vai ali e arma a banca?
– Não, que é isso!? Você precisa comprar o ponto.
– Mas de quem você compra?
– De quem estava lá. O dono precisa te apresentar para os demais marreteiros do local e avisar que dali em diante você fica com a banca. Não tem papel , não tem nada, mas todo mundo respeita.
Nosso taxista pagou cinco mil reais pelo seu ponto, em dinheiro. Obteve bom retorno.
– Teve mês que vendi 60 mil passes.
Calculo e me espanto: a 30 centavos por passe, isso dá 18 mil reais!
– Menos, ele explica, porque em lote grande a gente dava desconto e tinha que dar boa comissão para intermediários (pessoas que sabiam onde encontrar vendedores, mas não tinham capital nem ponto de venda). Mas teve mês que levei pra casa mais de 12 mil reais. E eu tinha ampliado o negócio.
Na verdade, ele havia diversificado: passara a vender suco de laranja.
– E dava dinheiro?
– Dava uns 20 reais por saco de laranja, isso limpo, depois de pagar a laranja, os funcionários, a energia, os copinhos, o gelo. Em dia bom, de calor, vendia de 12 a 15 sacos.
– Funcionários?
– Claro, não dava para tocar sozinho os dois negócios.
– Bom, pergunto, e no que dona Marta estragou?
– Quando ela lançou o bilhete único, eletrônico, que não tem como negociar. E só com a laranja não valia a pena.
Mas o ponto valia. Nosso taxista passou adiante por R$ 5,5 mil. Com mais sua poupança, comprou o táxi à vista.
– Mas se descobrir um jeito de negociar o bilhete eletrônico, volto a ser marreteiro.
Fiquei imaginando: o bilhete único é um avanço, mas, gente, que capacidade empreendedora, que organização desse mercado! Deveria haver um jeito de aproveitar esse pessoal. Um ambiente de negócios mais favorável ao empreendedor privado, de modo que fosse mais simples e mais barato montar negócios formais, mesmo que fosse o comércio de vale transporte, certamente ajudaria a atividade econômica e o emprego.
Fico imaginando: se fosse possível criar um título formal de propriedade das bancas, a pessoa poderia utilizar isso como colateral num financiamento, por exemplo, de casa própria. O marreteiro tem propriedade, tem renda, mas não pode utilizar isso para alavancar negócios ou consumo.
Além disso, como informal, não pode crescer além de uma barraca nova de laranja. E aquele empreendedor, como certamente muitos e muitos outros, tem capacidade de gerar riqueza e empregos.

Todos no congestionamento
Correndo pelo país, topo com queixas de trânsito nas cidades médias. As pessoas dizem: ?Não é como S.Paulo, claro, mas está complicando?.
Portanto, S.Paulo é a capital dos congestionamentos. Em Floripa, que tem enormes congestionamentos nos grandes feriados, os locais dizem: mas para quem vem de S.Paulo, isso é refresco.
É uma grande bobagem. A pior coisa que pode acontecer à bela cidade é seu pessoal achar que aquele caos é normal, assim mesmo, de modo que não há nada a fazer. Floripa já tem piorado por causa dessa atitude.
Na verdade, todas as cidades brasileiras, de médias para grandes, sofrem do mesmo problema. Não se vêem novas obras urbanas ? avenidas, viadutos, túneis, elevados. E quando há, demoram anos na construção. Encontra-se também muito obra parada.
Há uma combinação de falta de dinheiro e falta de prioridade. Se antigamente governar era rasgar estradas (avenidas, no caso), hoje a ideologia dominante (em todos os partidos, diga-se) determina que investimento bom é no social, numa definição tão ampla quanto vaga.
Tocar uma obra grande ? um complexo de viadutos ? é até uma coisa feia. Brotam as acusações: é coisa de empreiteira caixa de campanha loby das multinacionais dos automóveis é eleitoreiro. E se o prefeito, mesmo assim, vai em frente, topa com os órgãos ambientais e o ministério público.
Por trás de tudo, está um falso argumento: isso não resolve o problema do trânsito, o que resolve é o transporte coletivo.
Primeiro, é óbvio que se existissem mais ruas, avenidas e viadutos, a distribuição dos carros seria muito mais eficiente. E, segundo, de onde tiraram que bom transporte coletivo resolve? Basta observar as cidades que têm esse bom transporte ? Paris, sempre citada, N. York ? e se verifica que todas têm congestionamento de carros.
Tanto tem que eles lá fazem obras urbanas e colocam restrições à circulação de carros. Por muitos anos não escaparemos disso: o sujeito vai preferir ir com seu carro e só não o fará se isso for muito caro ou se demorar muito mais do que o coletivo.
Logo, se a maioria acha que indústria automobilística é muito boa para o país, se as pessoas têm cada vez mais crédito para comprar carros, está na cara que é preciso começar a intervir nas cidades e ampliar a capacidade do trânsito.
Mesmo porque não se vê investimento expressivo no transporte público.

Publicado em O Estado de S.Paulo, 19 de maio de 2008

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