. A lei não serve
O objetivo pode ser de enorme interesse social ? como impedir que motoristas embriagados saiam por aí provocando acidentes ? mas mesmo nesse caso a legislação e a ação das autoridades precisa observar determinadas regras e princípios. Por exemplo, bom senso e respeito à liberdade dos outros ? como os não-motoristas. Além disso, a lei precisa estar de acordo com a Constituição e passar na pergunta: faz justiça?
Na coluna de 7 de fevereiro último, argumentamos que a Medida Provisória que proibiu a venda de bebidas alcoólicas em bares, restaurantes e hotéis à beira de rodovias federais não passa nos testes do bom senso e do liberalismo. E também não passa do teste da justiça, diz a criteriosa sentença da juíza federal Vellêda Bivas Osares Dias Neta, da 24a. Vara Federal do Rio de Janeiro, emitida em 15 de fevereiro.
Com base em doutrinas (princípios da razoabilidade e da proporcionalidade) e na letra da Constituição, a juíza sustenta que a lei precisa cumprir três requisitos. Primeiro, a medida atende os objetivos pretendidos? Segundo, haveria meio menos gravoso para atingir o mesmo fim? Terceiro, o benefício obtido compensa o ônus imposto aos cidadãos?
O objetivo final pretendido pela MP é reduzir o número de acidentes nas rodovias, a partir da verificação empírica segundo a qual a maior parte dos desastres é provocada por motoristas embriagados. O meio escolhido é a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos estabelecimentos às margens das rodovias. Segundo a juíza, a MP cai nos três quesitos.
Não atinge o objetivo, pois não impede que o motorista consuma álcool, já que pode obtê-lo em muitos outros lugares.
É um meio gravoso, pois prejudica os donos dos estabelecimentos comerciais (e seus empregados e consumidores não motoristas) sem alcançar o objetivo nobre que é a redução do número de acidentes. E claramente há alternativa menos gravosa, que é a rigorosa fiscalização dos motoristas, com a aplicação maciça dos testes que medem o teor de álcool no sangue. A ação neste caso atinge diretamente o alvo.
Logo, tudo considerado, o pífio resultado a ser obtido não compensa o ônus imposto aos cidadãos.
Assim, a juíza Vellêda Dias Neta concedeu mandado de segurança e garantiu aos estabelecimentos associados ao Sindicato dos Hotéis, Restaurantes e Bares do Município do Rio o direito de continuarem vendendo bebidas alcoólicas nas margens das rodovias federais. Condenou a MP.
Há recurso e o caso certamente continuará causando polêmica. Vale a pena o debate, pois essa MP dos bares reflete um viés autoritário e preguiçoso do poder público no Brasil. Como dá muito trabalho cumprir a lei já existente, se baixa uma proibição geral que transfere o ônus para os cidadãos.
Fiscalizar motoristas, individualmente? Melhor proibir a venda de bebidas.
A Receita Federal tem dificuldade em saber se o contribuinte entregou a declaração no ano passado? Então exige que o contribuinte coloque o número do recibo do ano passado na declaração deste ano. O cidadão não guardou? Azar, vai para a fila da Receita. (Pressões posteriores levaram a Receita a fazer sua obrigação, oferecer o número do recibo pela Internet).
Outro caso: já existem leis estabelecendo os requisitos para que um carro circule por aí. Qualquer pessoa, a olho nu, percebe que há muitos veículos sem a menor condição. Se as autoridades fizerem seu serviço, tiram vários de circulação em qualquer esquina. Mas o que fez a Prefeitura de S.Paulo? Baixou uma norma pela qual todos os proprietários terão que levar seus veículos a um posto oficial para fazer a vistoria.
Ora, o que farão aqueles cidadãos cujos carros estejam irregulares? Não vão aparecer na vistoria. Ficarão sem o certificado, mas como a prefeitura os apanhará? Pegando o cadastro geral de veículos, separando os certificados dos não certificados, verificando o endereço dos irregulares e mandando os fiscais em cada casa para recolher o carro. Ou fazendo fiscalização nas esquinas ? tudo que poderia fazer desde já, sem torrar a paciência e sem avançar no bolso do contribuinte com a tal vistoria. E é tudo que não vai fazer também agora. Por que faria? Já não se baixou a norma rigorosa da vistoria?
Podem reparar, todo dia sai uma coisa dessas.
Publicado em O Globo, 06 de março de 2008