. Lula tem de comprar a liderança
Está claro que o presidente Lula não quer briga com a Bolívia de Evo Morales, assim como não quis briga quando Nestor Kirchner reclamou e levou medidas de proteção à indústria argentina que contrariam as regras do Mercosul e prejudicam exportadores brasileiros. Do mesmo modo, Lula não brigou com Hugo Chávez quando o governo da Venezuela impôs a mudança dos contratos da Petrobrás naquele país.
Por que Lula age assim? Diversas declarações de Lula e de seus assessores para diplomacia indicam os motivos. Antes de mais nada, Lula acha que é obrigação do Brasil ajudar e apoiar os parceiros da América do Sul. Essa obrigação decorre, em primeiro lugar, do que se considera a liderança natural do Brasil, por ser, de longe, a maior economia da região. O Produto Interno Bruto brasileiro deve ultrapassar neste ano os US$ 900 bilhões, valor que traz uma certa artificialidade. O real muito valorizado estufa o PIB em dólares. Mas mesmo descontando esse fator, a economia brasileira é pelo menos quatro vezes maior do que Argentina, a segunda colocada. Portanto, o Brasil tem mais capital para investir, mercado para importar e produtos a exportar. E neste caso, tamanho é documento. O Brasil tem peso dominante na América do Sul. Mas isto vale qualquer que seja o presidente e qualquer que seja a sua diplomacia. Ou seja, a essa liderança natural, Lula tem uma proposta de política externa para exercer a liderança política. O presidente se elegeu já pensando nisso, mas se encantou mesmo no início de seu mandato. Governantes dos países desenvolvidos e diretores dos organismos internacionais bateram palmas, entusiasmados, para um líder de esquerda de um país importante que combinava política econômica responsável com programas sociais. Era exatamente do que precisavam, já que as políticas econômicas ortodoxas ? ditas neoliberal – eram acusadas pela esquerda de gerarem pouco crescimento e muita pobreza. Se Lula endossava essas políticas, elas estavam reabilitadas. Era só esperar o resultado dos programas sociais. Esse ambiente confirmou para Lula a conclusão de que ele, sim, falava pelo mundo emergente e pelo mundo pobre. Talvez mais do que ele, seus colaboradores também acreditaram nisso. Tanto que o pessoal da área de comunicação chegou a estudar seriamente um plano para construir a imagem de Lula como estadista mundial. Mas se, no início, o mundo desenvolvido ouvia Lula como líder dos emergentes, não decorria daí que os próprios emergentes concediam ao presidente brasileiro esse papel. Não perceber isso foi um grande erro, que levou a várias derrotas. A diplomacia brasileira entrou de cabeça no plano de obter uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU, candidatou-se à chefia da Organização Mundial de Comércio e à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, atropelando outros países, como o Uruguai no caso do banco. Perdeu feio em todas. Ao mesmo tempo, outro projeto de Lula ? o de formar a Comunidade Sul-americana de Nações, da qual ele, claro, seria o líder, começou a enfrentar problemas. Depois que foram sepultadas as negociações em torno da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Lula e seu pessoal achavam que os sul-americanos e, depois, os latino-americanos, estreitariam sua associação política e econômica. Integração passou a ser o objetivo ? e é isso que explica, por exemplo, o fascínio do megagasoduto, que apareceu como projeto do Brasil, Venezuela e Argentina e que agora Lula quer transformar em projeto de toda a América do Sul. Para os formuladores da diplomacia de Lula, até aqui os sul-americanos estavam de costas, todos olhando para os EUA, subservientes e passivos. Agora, passariam a se integrar e, depois, poderiam se acertar com os EUA. Ocorre que muitos países aqui da região não gostaram dessa direção. Entenderam que estavam diante da opção integração sul-americana versus EUA ? e, mercado por mercado, o americano é muito maior. O fato é que diversas países trataram de acertar acordos de livre comércio com os EUA ? e o último dessa fila é o Uruguai. Nesse ambiente, se pretende manter o propósito de liderança, tudo o que Lula não precisa é de mais conflito com os países próximos. Daí a atitude conciliadora, por exemplo, diante da Argentina, o segundo sócio do Mercosul. Um desentendimento Brasil x Argentina mela o Mercosul, que é, entretanto, a base da diplomacia de Lula. O governo brasileiro topou as salvaguardas exigidas por Kirchner e, agora, ficou tacitamente no lado da Argentina na disputa com o Uruguai em torno das fábricas de celulose. (Estão sendo construídas na margem uruguaia do rio Uruguai e o governo argentino entrou com embargo nas cortes internacionais, alegando que as fábricas poluem o rio comum). Há informações, na imprensa argentina, de que Lula tentou convencer Kirchner a aceitar uma mediação, mas este não quis nem iniciar essa conversa. E o Uruguai foi entregue. Não é um bom resultado para Lula, mas que fazer? O Uruguai é o menorzinho. Por isso, também, seria de todo indesejável um conflito com a Bolívia. Já tem muita coisa dando errado na grande Comunidade. Mas há um problema nessa atitude, que apareceu claramente no affaire boliviano. Até que ponto interesses nacionais específicos ? como os investimentos da Petrobrás na Bolívia ou os negócios perdidos por exportadores brasileiros na Argentina – podem ser prejudicados em nome da pretensão de liderança? Kirchner, por exemplo, não tem esse problema. Ele só pensa nos interesses imediatos de sua economia e de sua política, mesmo se for preciso detonar o Mercosul. O ministro Tarso Genro disse na última sexta que o Brasil ?age como líder, não como tutor?. Quer dizer que o país não vai dar lições a Bolívia, nem punir Evo Morales, mas, de novo: até que ponto podem ser entregues interesses nacionais específicos? A diretoria da Petrobrás disse com todas as letras que investimentos na Bolívia, em energia, ao menos, tornaram-se antieconômicos. Mas Lula promete investimentos. Ou seja, está comprando a liderança. Difícil dar certo, sobretudo depois que apareceu Hugo Chávez, o líder de fato da turma anti-EUA. Lula e sua diplomacia ficaram atravessados na história. Publicado em O Estado de S.Paulo, 08 de maio de 2005