. Capitalismo de ladrões
Talvez a nova idéia revolucionária seja esta: avacalhar o capitalismo. Diz-se que os russos estão empenhados nisso, depois de terem avacalhado o socialismo. Funcionaria assim: perdidos os projetos de socialismo, o que faz uma esquerda obrigada a aceitar o capitalismo? Estraga o sistema. Como? Pela grossa corrupção e pela disseminação da cultura de que o regime funciona assim mesmo, na roubalheira.
Esclareçamos logo a brincadeira: ninguém está sugerindo que algumas esquerdas se organizaram e colocaram espertamente em marcha uma conspiração insidiosa para, via corrupção e desmoralização, solapar o capitalismo. É duvidoso que tivessem competência para isso.
A coisa acontece naturalmente. Tome-se o caso da Rússia. O regime socialista ruiu de velho, na seqüência de uma onda mundial acolhida por uma população farta de sua ineficiência, corrupção e privilégios para a burocracia do partido e do Exército. Mas não havia uma oposição organizada, nem muito menos alguma força política liberal capaz de liderar a construção do capitalismo.
Não havia a cultura da liberdade de empreender, com direitos iguais.
Assim, os mesmos e antigos burocratas se encarregaram dos negócios. Mais exatamente, das negociatas, como foram as privatizações, montadas de tal modo que as estatais caíram nas mãos de seus ex-dirigentes, a preços camaradas. E continuaram funcionando na base do capitalismo de amigos, com os favores do governo, especialmente do atual presidente Vladimir Putin, ex-chefão da KGB, a polícia secreta.
Estabeleceu-se uma espécie de acordo com esses novos capitalistas: cada um poderia tocar seu negócio, sem perguntas sobre o passado, desde que não entrasse na política contra Putin. Quem entrasse, sofreria o rigor da lei, como aconteceu com o caso Yukos, uma gigante do petróleo, cujo dono, Mikhail Khodorkovsky, entrou na imprensa e na política. Acabou preso por sonegação.
Não estamos dizendo, nem de brincadeira,que o Brasil parece a Rússia. Longe disso, aqui há instituições capitalistas, há forças políticas liberais. Mas também existe uma cultura segundo a qual a roubalheira e o assalto ao dinheiro público são coisas inerentes ao regime.
Se não fosse essa idéia, como explicar a sem cerimônia com que se procura dizer que caixa dois para campanha eleitoral não tem problema algum? Pegar dinheiro por fora para o partido pode, o feio é colocar no próprio bolso. Lembram-se do depoimento de Duda Mendonça? Ele disse que receber o pagamento pela campanha presidencial no caixa dois de um paraíso fiscal era um deslize tributário, mas não tinha nada de imoral. Era o único meio, explicou, de receber por um trabalho honesto. E segue a ciranda.
Com a mesma sem cerimônia, o advogado Rogério Burati contou histórias espantosas. Disse, por exemplo, que a empreiteira pagar propina para partido político, no caso o PT, era simplesmente a ?regra do jogo?. Contou ainda que, em nome de amigos do Ministério da Fazenda, foi ouvir da empresa Gtech uma proposta de doação de dinheiro para o PT caso a companhia ganhasse com vantagens um contrato com a Caixa Econômica Federal. Ouviu, transmitiu e os amigos da Fazenda teriam dito que resolveram ficar de fora ? sempre na versão singela de Burati.
Correligionários do ministro Antonio Palocci tomaram isso como prova de honestidade. Estão vendo? O ministro não se meteu nessa lama ? diziam.
Mas, gente, vamos reparar. Se o ministro ou seus assessores tomaram conhecimento da proposta de propina e não fizeram nada ? simplesmente disseram ?não, obrigado? ? isso já configura imoralidade e crime.
Também teve um comportamento no mínimo esquisito o chamado mercado financeiro. Quando Burati fez a primeira denúncia ? que a prefeitura de Palocci em Ribeirão Preto arrecadava uma caixinha de 50 mil mensais para o PT ? o pessoal vendeu ações e comprou dólares. Depois, o ministro disse que era tudo mentira e o mercado vendeu os dólares e recomprou ações. Depois, na CPI, Burati repetiu tudo ? e o mercado nem aí. Ah, ele não tem provas, foi o comentário.
Está dito aí que o problema não é fazer – ou não ? caixa de campanha. É fazer bem ou mal feito. Também está dito aí que o problema não é avançar no dinheiro público, mas fazê-lo para fins pessoais. Está na base da defesa de muitas lideranças petistas: não colocamos nenhum centavo no bolso, era tudo para o partido, a causa, dizem.
Assim, a montagem de uma enorme rede de financiamento do partido, com dinheiro clandestino, seria apenas um equívoco, um erro político. Nada imoral, nem criminoso, pois não é assim mesmo que coisa sempre funcionou? Até se estaria agora pegando dinheiro para uma boa causa, a do povo, via PT.
E não é assim. Não deve ser assim. A corrupção, o assalto ao estado, destrói a base do capitalismo e do regime político liberal, seu complemento, pois nega uma condição essencial do conjunto do sistema: igualdade de condições, igualdade de direitos.
É simples assim. Se uma empresa recebe qualquer vantagem por causa de suas boas relações com o governo e o partido do governo, isso elimina a base da livre concorrência. Viola o direito de todos os outros que não são amigos do homem e ameaça a eficiência econômica do sistema.
Se o sucesso de um empreendimento depende das boas relações com o governo, para que gastar dinheiro buscando produtividade, competitividade, preço bom? Melhor investir numa boa rede pessoal em Brasília, não é mesmo?
Em poucas palavras: um parlamentar, um líder político, apanhar ou mandar apanhar um pacote de dinheiro numa salinha ?discreta?, todo mundo disfarçando, é, sim, caso de cassação e processo. Uma empresa se beneficiar se qualquer vantagem por participar desse esquema, é caso de crime e dá processo para seus executivos.
Ou então, vamos todos esculhambar o capitalismo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 29/agosto/2005