. Em 29 de outubro de 1998, uma quinta-feira, em meio à maior crise financeira mundial dos últimos 50 anos, o serviço de notícias econômicas on line da CNN abria assim o noticiário da manhã: ?Wall Street does the samba? Algumas horas depois, o informativo confirmava: ?Brazil gives stock a boost? (algo como ?Brasil joga as ações para cima?). No dia anterior, o governo Fernando Henrique havia lançado o Programa de Estabilidade Fiscal, com o objetivo de restaurar a confiança internacional na economia brasileira. Parecia funcionar. O Programa ocupou a principal notícia de primeira página do New York Times e a manchete do Los Angeles Times. O ?dominó que não pode cair? ? essa expressão, repetida nos principais jornais e revistas do mundo, resumia a análise sobre a economia brasileira. Temia-se que seu eventual colapso derrubasse outras peças pelo mercado financeiro global. O Brasil era tudo isso? Na verdade, desde o Plano Real o Brasil se tornara, depois da China, o principal alvo dos investimentos estrangeiros diretos. Até 1995, o estoque desses investimentos no Brasil alcançava US$ 55 bilhões. De 1996 a 98, o país recebeu US$ 49 bilhões ? em três anos quase tudo o que se recebera em toda a história. Compreende-se por que, numa reunião dos sete países mais desenvolvidos, o G-7, o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, tenha comentado: ?O Brasil é o nosso Rubicão?. Foi por isso que saiu o programa de assistência financeira internacional que colocou à disposição do Brasil nada menos de US$ 41,9 bilhões. Metade do dinheiro veio do FMI, a outra metade de uma vaquinha feita pelo Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, governo dos Estados Unidos e de uma vintena de países. Não se tratava de generosidade. Eles estavam defendendo o deles. Mas dava na mesma. Por um motivo ou por outro, o Brasil não podia quebrar. Na comunidade financeira internacional ? liderada pela Secretaria do Tesouro e banco central dos Estados Unidos – era majoritária a opinião de que o Brasil faria melhor negócio se modificasse sua política cambial e deixasse o real se desvalorizar. A equipe econômica, apoiada pelo presidente Fernando Henrique, ainda que este se mostrasse cada vez mais hesitante nessa matéria, conseguiu convencer que poderia manter a política cambial e bloquear a fuga de dólares com a combinação de duas providências. Uma, era o Programa de Estabilidade Fiscal, que cuidaria da principal fragilidade da economia brasileira, o desequilíbrio das contas públicas. Tratava-se daquele mesmo Programa que, quando anunciado em 28 de outubro de 98, havia feito Wall Street sambar. A outra era justamente o pacote financeiro internacional, os US$ 41,9 bilhões que engrossariam as reservas do Banco Central, necessárias à defesa do real. Arranjem-nos os dólares e nós controlamos as contas, dizia o ministro Pedro Malan. Toparam. Mas o Programa de Estabilidade dependia de leis a serem votadas no Congresso. E em 2 de dezembro de 1998, com os votos de parlamentares governistas, a Câmara dos Deputados rejeitou a emenda que aumentava a contribuição previdenciária dos funcionários federais da ativa e introduzia a cobrança dessa contribuição para os inativos. Assim como em outubro a notícia do Programa de Estabilidade Fiscal havia corrido o mundo, também aconteceu com a derrubada da emenda das contribuições. Só que, claro, derrubando mercados. O mesmo noticiário econômico on line da CNN informava no final do pregão de quinta-feira, 3 de dezembro de 98: ?O índice Dow Jones (da bolsa de Nova York) fechou com baixa de 2% em resposta à queda de 8,8% no Brasil (Bovespa). Investidores passaram a temer uma nova crise nos mercados emergentes depois do adiamento da reforma previdenciária no Brasil, parte das condições necessárias para a ajuda do FMI?. A contribuição previdenciária nem traria tanto dinheiro. Era até possível compensar a perda. Mas o que passou para a comunidade internacional estava bastante claro: o Brasil, que tinha uma longa tradição de prometer ajuste de contas públicas e não cumprir, estava reincidindo. O presidente não tinha apoio no Congresso para fazer o ajuste. A crise de confiança se aprofundava quando veio o ?efeito Itamar?. Em 6 de janeiro de 99, o recém governador de Minas declarou seu Estado em moratória – não pagaria nem as prestações da dívida com o governo federal nem as da dívida externa. Parecia só mais uma do Itamar. Além do mais, o governo federal tinha garantias contra o calote, isto é, poderia reter impostos de Minas para cobrir as prestações não pagas. No cenário externo, entretanto, a expectativa negativa sustentava que o Brasil não conseguiria honrar seus compromissos. Havia fuga de capitais porque o pessoal temia um calote futuro. Nesse momento, um ex-presidente da República, governador de um estado que é maior que muitos países europeus, diz que não vai pagar mesmo. Em 13 janeiro de 1999, o dominó brasileiro caiu, com a desvalorização forçada do real. Não se pode dizer, é claro, que o colapso resultou apenas da votação no Congresso e do efeito Itamar. Na verdade, a política econômica brasileira vinha sofrendo contestações há bastante tempo. A conjuntura não era nada favorável: havia uma crise nas contas públicas, a dívida do setor público crescia sistematicamente, a taxa de juros permanecia elevada para atrair dólares ? e assim impedia o crescimento interno e aumentava o desemprego ? e crescia o déficit nas contas externas. Era cada vez mais ampla a percepção política de que o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso estava convencido da necessidade de mudar o modelo. E o pior que pode acontecer a uma política econômica, qualquer uma, é quando os dirigentes e a sociedade perdem a confiança. Foi nesse ambiente que surgiram aqueles dois enormes baldes de gasolina atirados na fogueira. A maior surpresa, entretanto, veio depois, no desenrolar da crise brasileira: não explodiu a inflação, a recessão não foi brava, nem houve contágio mundial. Os mercados internacionais sentiram, é claro, mas nada remotamente parecido com o terremoto pós-Rússia. Quer dizer, então, que toda aquela história de Rubicão, do ?dominó que não pode cair?, era uma bobagem? Não, respondeu o então subsecretário e hoje secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Lawrence Summers. O Brasil, comentou ele, não podia quebrar era em outubro de 1998, em meio ao pânico no mercado internacional. Depois . . . Em janeiro de 1999 já estava todo mundo preparado e precavido. Eis aí, o país continua sendo importante, ajudaria se fosse melhor, atrapalha quando vai mal, mas, o senhor, a senhora sabem, ?la nave vá?. Ou seja, os problemas brasileiros dependem da gente ? o que não é necessariamente animador. Por falar nisso, a contribuição previdenciária continua pendente. Minas continua numa moratória que não lhe serviu para nada. O governo federal reteve impostos equivalentes às prestações não pagas. Quer dizer, foi só estrago. Carlos Alberto Sardenberg
Um ano da desvalorização – histórias da crise
- Post published:9 de abril de 2007
- Post category:Coluna publicada em O Globo
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