100 DIAS DE GOVERNO LULA

. Nove meses ruins de expectativa, 100 dias bons de governo O resumo da ópera: o Brasil piorou espetacularmente entre abril e setembro do ano passado porque os investidores, especialmente lá fora, acharam que o governo Lula ia fazer a moratória e quebrar o Brasil. E agora está melhorando, rapidamente, porque os mesmos investidores se convenceram de que o governo Lula não quer saber de calote. Essa é a parte principal da história. Entre um momento e outro, foi crucial a atuação das duas equipes econômicas, a que estava saindo e a que estava chegando. Um resumo um pouco mais detalhado da história segue assim: os anos de 2001 e 2002 não foram bons no mundo. Para os países emergentes em especial, houve seguidas quedas no investimento direto e nos financiamentos externos. Aversão ao risco era o nome do jogo. Assim, o risco país emergente piorou para todos, mas para o Brasil piorou muito mais. A causa central disso, a partir de abril do ano passado, quando começou a campanha eleitoral, foi a expectativa de que o Brasil teria um governo de esquerda populista que partiria para as políticas heterodoxas, como congelamento de preços, tabelamento de juros, controle de câmbio e, afinal, moratória da dívida pública interna e externa. Ou seja, um governo sem compromisso com o mercado e os contratos, como o de Hugo Chavez. Isto não é exagero. Sei por conta própria. Naquele período difícil, participei de diversos eventos com investidores, executivos e administradores internacionais, cuja principal questão era: qual a chance de o Brasil virar uma grande Venezuela? Quando surge essa inquietação, o mercado se adianta. Os investidores vendem títulos do país, vendem ações e levam seu dinheiro embora. E o país quebra se não consegue defender-se adequadamente. Em 27 de setembro de 2002, o C-Bond, principal título da dívida externa brasileira, era negociado a 49 centavos por dólar de valor de face, quando o risco Brasil chegava a 2.448 pontos, contra os 700 de março daquele mesmo ano. É preço de calote. Só há dois tipos de compradores para esse papel: no primeiro grupo, os investidores “abutres” que acreditam ou querem que haja calote, para depois entrar na renegociação da dívida que sempre se segue, em geral coordenada por instituições internacionais, e ao cabo da qual o papel se valoriza. Demora, mas dá lucro, como deram os papéis russos depois da moratória de 1998. O segundo grupo de investidores é do pessoal que aposta que não haverá calote. (Aliás, o pessoal que se deu bem. O C-Bond estava acima dos 80 centavos no final da semana passada). Era possível fazer essa aposta no Brasil em setembro do ano passado? Era. Por exemplo: os pagamentos da dívida externa pública, amortização do principal e juros, de agosto de 2002 a dezembro de 2003, somavam US$ 22,6 bilhões. Naquele momento, as reservas do Banco Central eram de US$ 39 bilhões e estava fechado o acordo com o FMI, já endossado por Lula, que previa o aporte de mais US$ 30 bilhões para o período. Ou seja, mesmo que não entrasse nenhum dólar novo, com zero de refinanciamento, os pagamentos seriam honrados. Na dívida interna a situação era a seguinte: os vencimentos até dezembro de 2002 somavam R$ 68,6 bilhões. E o Tesouro tinha em caixa R$ 70 bilhões. De novo, mesmo que o governo não conseguisse colocar um único título, haveria dinheiro para pagar. E ainda era preciso considerar que a dívida interna era, como é, totalmente feita e paga em reais, sendo os credores quase exclusivamente brasileiros, bancos, empresas e pessoas (através dos fundos de investimentos financeiros). Por isso, sempre houve mercado para esses títulos. Muitas instituições são obrigadas a manter esses títulos, sendo um mercado cativo. Finalmente, mesmo que não houvesse um único comprador para os papéis públicos, o governo poderia emitir reais e resgatá-los. Haveria inflação (e indexação, correção monetária, etc) mas não calote. Por isso, aliás, em nenhum momento, mesmo nas crises mais agudas, o governo deixou de vender papéis. Vende menos, paga juros maiores, mas sempre vende algo. Resultado: olhando os números, o risco de calote era zero, tanto na dívida externa quanto na interna. Por que, então, os indicadores indicavam calote iminente? Porque se entendia que o futuro governo tomaria a decisão política de “não pagar os banqueiros para gastar com os pobres”. Ou seja, para achar que não haveria calote era preciso, primeiro, dar uma boa olhada nos números e entender que havia sido construída uma boa base; segundo, acreditar que o governo Lula, que já endossara o acordo com o FMI, aplicaria uma política econômica ortodoxa; terceiro, supor que as equipes econômicas teriam tempo e condições de segurar a travessia. Foi a aposta vencedora. Fernando Henrique Cardoso, Pedro Malan e Armínio Fraga administraram a travessia política e econômica. Luís Inácio Lula da Silva, com o pessoal de seu núcleo duro, especialmente José Dirceu, caminhou firme para o centro e ainda descobriu Antonio Palocci, que descobriu Henrique Meirelles. Nesses 100 dias de política consistente, o governo Lula ainda deu a sorte de ter aumentado a disponibilidade de financiamentos no mercado internacional. Com a taxa de juros muito baixa nos países desenvolvidos, investidores procuram lucros maiores nos títulos dos países emergentes. E como os papéis brasileiros haviam sido os mais desvalorizados, eram os mais baratos, agora com a garantia de cumprimento dos contratos. Resultado, assim como o Brasil, no ano passado, havia piorado mais que os demais emergentes, agora melhorou mais e mais depressa. Caiu o risco país para todos, mais para o Brasil. E assim o país desembarcou onde? Não onde estava há um ano. A crise levou a uma inversão de problemas imediatos: em março do ano passado, a inflação acumulada em 12 meses era de 7,5% (pelo IPCA); hoje, está passando dos 15%. Em consequência, a taxa básica de juros, que era de 18% ao ano, agora alcança 26,5%. Em compensação o déficit em conta corrente (déficit das contas externas), anual, que estava na casa dos US$ 23 bilhões, caiu para US$ 7 bilhões no final de 2002 e será de no máximo US$ 5 bilhões neste ano. O dólar caro alavancou exportações, reduziu importações, forçou substituição de importações. Mas deixou em situação difícil importante setores da economia devedores em dólar, como as empresas de energia elétrica. Resultado geral: as contas externas se ajustaram; a inflação piorou e exige combate intenso; as contas públicas pioraram por causa da dívida indexada ao dólar e exigiram um superávit primário maior, feito pelo governo até aqui. Mas para uma mudança estrutural nas contas públicas continua sendo essencial debelar o déficit previdenciário, especialmente do setor público. Aí seim será uma boa mudança de fundo. Ou seja, o governo Lula veio bem nos primeiros 100 dias, no quesito de política econômica. Tem ainda muito serviço pela frente. Publicado em O Estado de S.Paulo, 07/04/2003

Deixe um comentário