Não teve perdão. O colega ficou de segunda época na matéria Canto Orfeônico por “desrespeito à pátria”. Era novembro de 1959, segundo ano do ginásio na escola pública de Botucatu, interior de São Paulo, dia de exame oral, que consistia em cantar um trecho de um dos quatro hinos principais: nacional, da Independência, da Bandeira e da República. E quando o professor perguntou qual hino havia sido sorteado, o colega, distraído, respondeu: “O virundum”.
“Zero, pode ir embora”, decretou o mestre.
Um vacilo porque todo mundo sabia que o professor era nacionalista ferrenho. Não, não era militar, nem direitista. Até se desconfiava que fosse meio comunista. De todo modo, patriota.
A gente cantava um hino todos os dias. Os alunos, uniformizados, formavam no pátio, cantavam e andavam em fila para as salas. Claro que todo mundo tirava sarro. “Ouviram do Ipiranga” era o “virundum”. “Já podeis da pátria filhos” saía como “japonês tem quatro filhos”. Tinha ainda o “porém se a pátria amada precisar da macacada….”
Só no científico, primeiro ano do segundo grau, se dispensavam uniforme, filas e hinos.
Talvez porque se entendesse que, aos 16 anos, os jovens já estivessem bem formados e não necessitassem mais de tanta disciplina. Talvez porque já estivéssemos iniciando os anos 60, momento político de mais democracia.
Mas ninguém reclamava de cantar os hinos. Assim, não sei o que teria acontecido se algum aluno se recusasse ostensivamente a cantar. Mas sei que aula de religião, católica, claro, não era obrigatória. Logo no começo do ano, os pais informavam a religião da família e os protestantes e judeus eram dispensados. Iam para o recreio, sob uma disfarçada inveja dos que permaneciam.
Tudo isso para dizer que o ministro da Educação. Ricardo ……., cometeu um erro inacreditável. O problema de sua ordem não estava em cantar o hino, mas no seu claro objetivo de doutrinação e propaganda. Além de cantar, os alunos deveriam aprender o lema da campanha de Bolsonaro, que o presidente repete em seus discursos.
O lema não quer dizer nada. “Brasil acima de tudo” pode ser dito por qualquer brasileiro. A questão é outra: qual Brasil queremos que esteja acima de tudo? Um país com um governo socialista, direitista ou liberal?
Do mesmo modo, “Deus acima de todos” não significa nada. Para os crentes, de qualquer religião, é uma obviedade. Claro que Deus está sempre acima, mas é uma falsa unanimidade. De qual deus estamos falando? As diversas religiões fazem imagens diferentes, de modo que cada um entende a frase à sua maneira.
Para os ateus, os não crentes, trata-se de uma sentença vazia.
Usado em campanha eleitoral, entretanto, torna-se marca registrada, unilateral. Não pode, pois, ser imposta a todos os alunos do país. Pretender isso revela uma concepção autoritária do que seja a educação.
Mas não é novidade. Em 20 de setembro de 2007, escrevi aqui mesmo: “Domingo à noite, numa reunião de famílias amigas, vejo uma menina de 16 anos, aluna de um dos melhores colégios de São Paulo, queimando os miolos com o livro História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman. Mais exatamente com o capítulo 18, tema da prova do dia seguinte, que destacava dois itens: Marx e Engels anteciparam o colapso do capitalismo; e o socialismo é inevitável.”
A coluna, que está em meu livro “Neoliberal, não; liberal”, contava como as elites universitárias brasileiras continuavam socialistas mesmo depois da queda do muro de Berlim. E me espantava com o fato de que os jovens simplesmente poderiam tirar zero se escrevessem que o socialismo era um óbvio fracasso. Pior do que ter dito que o hino sorteado fora o “virundum”.
De lá para cá, o pensamento socialista continuou dominante nas universidades, nas escolas, nas elites intelectuais. Não foi oficial, mas indiretamente imposto pelo conteúdo do ensino e pelo que se considerava resposta certa nos testes de Humanas.
Um baita problema porque, sutilmente, eliminava a liberdade de pensar. Ainda temos que lidar com isso. Mas certamente não tornando obrigatório o “Brasil acima de tudo”.
Exige-se estudo, convencimento, persuasão e livre pensar.