TRANSGÊNICOS E INVESTIMENTO PRIVADO

. Fazendo cabeças … e leis Talvez não se tenha atribuído o devido peso a uma das frases do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dita na entrevista ao Fantástico do dia 17. Quando falava sobre mudanças que as circunstâncias impõem, Lula observou, sem que tivesse sido perguntado explicitamente a respeito daquele tema: “Transgênicos, por exemplo, já fui politicamente muito contrário; hoje, cientificamente, tenho dúvidas". O primeiro ponto a destacar é a sinceridade do presidente. Todos sabem que se trava no governo um difícil debate a respeito de uma nova legislação para os transgênicos. Lula poderia tratar disso como pessoa jurídica, digamos. Examinaria as tendências entre seus auxiliares, ouviria especialistas, consideraria as posições no Congresso e tomaria uma decisão objetiva resultante desse balanço neutro. Mas não. Parece que o presidente, além de considerar as posições dentro do governo, está fazendo sua própria cabeça. E está mudando, mais uma vez. A frase chave é a seguinte: “Já fui politicamente muito contrário”. Ora, transgênicos (ou alimentos geneticamente modificados, na sigla GM) não é uma questão política. É científica, pois o ponto central é avaliar a qualidade dos GM e saber se prejudicam ou não o homem e/ou a natureza. Estamos, portanto, na seara da biotecnologia. Mas se não é política, a questão pode ser politizada – e é justamente o que faz o pessoal contrário aos transgênicos. A oposição aos GM tornou-se uma posição de esquerda. Foi inevitável que isso acontecesse. No campo científico, o pessoal do contra perde feio. Não há cientista ou instituição de peso e reconhecimento internacional que se oponha aos transgênicos com argumentos científicos. Todos reconhecem que, como qualquer tecnologia nova, esta também traz riscos. Mas, como se diz, é como um avião novo que acaba de sair da linha de montagem e vai voar pela primeira vez. Tem risco de cair? Tem. Mas a ciência, tecnologia e experiência que se acumulam naquele aparelho sugerem que a maior probabilidade, disparada, é que decole sem problemas. Assim com os transgênicos. Passam em todos os testes de laboratório e de campo e não aconteceu nada de errado nos países que os utilizam há anos. Além disso, reduzem a necessidade de pesticidas e agrotóxicos, são mais produtivos e, pois, mais rentáveis, razão pela qual exercem irresitível atração entre os agricultores. Mas, diz o pessoal contrário, é preciso respeitar o princípio da precaução e dar um tempo – mais ou menos como deixar o avião no hangar para ver o que acontece. Mas além disso, ocorre que o primeiro GM comercial no mundo foi a famosa soja da Monsanto, multinacional americana. A companhia, na ânsia de ter descoberto uma mina de ouro, foi extremamente agressiva (truculenta, dizem muitos analistas) na campanha para viabilizar seu produto nos EUA e pelo mundo afora. Fez lobby pesado em Washington, cooptou autoridades americanas para “vender” o produto em outros países, entrou em conflito com os produtores de sementes convencionais e de pesticidas e agrotóxicos. Isso provocou reações diversas – comerciais, administrativas (rolaram cabeças entre executivos da companhia) e políticas, estas obviamente à esquerda. Ser antiglobalização, como se sabe, inclui ser contra o BigMac e os transgênicos – politicamente. Daí o peso da frase de Lula. Significa a admissão de que a oposição de esquerda aos transgênicos é política. E sendo política, concluímos nós, não tem o menor sentido econômico. Quer dizer, como posição ideológica, cabe perfeitamente nas manifestações de rua e no Fórum Social de Porto Alegre. Mas não serve para a elaboração de uma política de governo que precisa em levar em conta a importância do agronegócio no Brasil e os interesses legítimos dos agricultores. Se os GM são cientifica e economicamente sustentados, proibi-los é simplesmente impedir uma importante atividade econômica, geradora de renda e emprego. É verdade que o presidente ainda não está totalmente convencido. Declara-se “cientificamente em dúvida” – está balançando, já não é contra, mas ainda não é a favor. Sabemos, entretanto, que o pessoal favorável aos transgênicos – que inclui o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues – tem feito proselitismo em Brasília, aparentemente com bons resultados. Ocorre, entretanto, como em tantos outros casos, que os companheiros de Lula não mudam com a mesma sinceridade e velocidade do presidente. Assim, a coisa empaca. A minuta do projeto de lei sobre os transgênicos, revelada pelo Estado na semana passada, parece um empate. Autoriza experiência e cultivo de transgênicos, desde que se cumpram certas condições. Mas as condições são de tal modo complicadas, que o jogo vira a favor dos anti-GM – e só será decidido no Congresso. Isso é má notícia para os agricultores gaúchos que há seis anos plantam soja transgênica com sementes trazidas da Argentina. A próxima safra se planta agora em setembro e está proibido o plantio dos transgênicos, conforme diz a lei que autorizou a comercialização da soja transgênica da colheita anterior. Aliás, essa autorização trazia a exigência de que a soja transgênica fosse separada e carimbada. Foi? Claro que não. Desde o início se sabia que não havia condições técnicas para armazenar e comercializar separadamente e que o Ministério da Agricultura não tinha como fiscalizar. Resumo da ópera: enquanto segue o rolo político-científico em Brasília, o pessoal vai plantar e colher transgênicos no Rio Grande do Sul. E esse fato de realidade pesa na decisão final, como já ocorreu antes. Mas tudo seria mais simples que o presidente já tivesse feito o caminho completo e se rendido aos argumentos científicos, abandonando de vez a oposição política. Isso ainda pode acontecer. Investimento privado Anotem outra frase de Lula, esta da entrevista concedida à revista Veja de 20 de agosto: “Como é que nós vamos fazer saneamento básico nas regiões metropolitanas deste país sem atrair investimentos de fora? Não cabe mais aquele discurso ideológico de que saneamento básico é obra do governo federal e responsabilidade do governo estadual e do prefeito. Esse discurso seria maravilhoso se tivéssemos dinheiro para fazer. Não adianta fazer um bom discurso ideológico e o povo continuar pisando em esgoto a céu aberto e bebendo água não tratada”. Reparem. A oposição entre discurso ideológico e falta de investimento é equivalente à do caso dos transgênicos, entre política e ciência. A oposição ao investimento privado em saneamento é tão política e ideológica quanto a oposição aos transgênicos. E ambas bloqueiam investimentos cruciais para o espetáculo do crescimento. Tudo considerado, parece que isso já está claro para o presidente. É um pedaço de caminho andado, mas ainda é preciso dar efeitos práticos, na forma de novas legislações, a essas sinceras mudanças – como se fez no caso da Previdência. Os investimentos estão esperando.Veremos. Publicado em O Estado de S.Paulo, 25/08/2003

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