QUANDO A MOEDA JÁ COMEÇA COM O NOME ERRADO

. E se o argentino apodrecer? Pelo menos um enorme equívoco o governo Rodriguez Saá já cometeu: batizar de “argentino” a nova moeda. Há um apelo patriótico nessa jogada, com o objetivo de construir confiança em torno da nova moeda. Acredite no argentino, confie no argentino – podem ser slogans para o seu lançamento. Mas o que acontece se o novo dinheiro perder valor? Se o “argentino” apodrecer e passar a ser desprezado pelos argentinos e pelas argentinas de verdade? Aliás, por que a moeda vem no masculino e não no feminino? Uma argentina, um milhão de argentinas – isso não ficaria melhor? Sim, há moedas femininas, embora não seja a regra. A lira italiana ou a peseta espanhola, por exemplo. Em inglês, o problema não existe. O dólar e a libra só adquirem gênero em línguas latinas. Então, não seria mais apropriado, nestes tempos modernos, “uma argentina”? Pensando bem, não. Na desvalorização seria ainda pior. Sairiam coisas assim: essa argentina não tem valor; uma argentina não vale um maço de cigarros, não vale um trago … Neste caso, portanto, o machismo é aceitável. Será menos ruim a desvalorização do “argentino” do que da “argentina”. De todo modo, o nome de uma nova moeda é um ponto tão importante e complexo quanto a operação de construção e lançamento. Pensem no euro – aliás, masculino – que começa a circular amanhã na Europa, um dos mais extraordinários acontecimentos deste novo milênio. O nome vale para todas as línguas da região, de modo que ninguém se sentirá usando uma moeda estrangeira. Mas é claro que não há como comparar. O euro resulta de uma decisão primariamente política, impulsionada por dois grandes estadistas, o alemão Helmut Kohl e o francês François Mitterand. Seguiu-se uma longa e cuidadosa operação de lançamento. Já o “argentino” foi uma tacada do populista presidente Rodriguez Saá, um arranjo de momento para emitir moeda e desvalorizá-la, enquanto se mantem o discurso de que não haverá nem desvalorização, nem dolarização. O própria Saá foi um arranjo político. E se coisa nasce como um truque, as chances de êxito tornam-se remotas. Por mais patriótica que seja a população, ninguém vai confiar numa moeda só pelo nome e apelo político. Se o papel não servir para fazer contas (e saber o preço certo das coisas), para comprar e para poupar a longo prazo, vira papel pintado. Em resumo, o “argentino” nasce com péssimo prognóstico. O presidente Rodriguez Saá foi à sede da principal central sindical para dizer, entre coisas, que não vai desvalorizar o peso – porque isso seria empobrecer o trabalhador, tirar valor de seu salário – nem dolarizar – porque seria abrir mão da soberania nacional. Verdade nos dois casos. Sendo que a desvalorização tem justamente, entre suas funções principais, a de desvalorizar os salários nacionais de modo a baratear o produto nacional e torná-lo mais competitivo em dólares. Por isso, “no devaluar”, bradou o presidente e correu para o abraço dos sindicalistas. Em seguida, anunciou que vai suspender o desconto de 13% nas aposentadorias, liberar os saques bancários de salários e aposentadorias, contratar um milhão de desempregados e quase triplicar o salário mínimo, para 450 dólares/pesos no setor privado e 550 dólares/pesos no setor público. A platéia vai ao delírio – e nem toma em consideração quando o presidente e outras autoridades, em lugares e circunstâncias diferentes, dizem que tudo aquilo será pago em “argentinos”. Fica assim, portanto: o argentino ou a argentina vai ao banco, onde tem guardados mil pesos que valem mil dólares, por lei, ou mil dólares diretos; faz um cheque no valor total e recebe, em notas estalando de novas, mil “argentinos”. Confia na nova moeda, coloca o dinheiro no bolso e vai às compras, no espírito da nova política econômica que é de estimular a demanda. Interessa-se por uma bermuda, já se preparando para o verão em Florianópolis. Preço: 30 pesos ou dólares, 52 argentinos (já que a maioria dos analistas acredita que a nova moeda sofrerá uma desvalorização em torno de 40%). Digamos que tope, mesmo porque não terá alternativa. Aí vai à agência de turismo dos verões passados. O pacote para Floripa continua custando mil dólares – mas agora são 1.400 argentinos. Ou seja, a poupança inicial dava para as férias, já não dá. E se mesmo assim conseguir chegar em Floripa, o pessoal da ilha não vai aceitar os “argentinos”, só dólares. E quando o argentino ou a argentina for trocar seus “argentinos” por dólares, não vai sair um por um, mas, na melhor hipótese, 14 “argentinos”por dez dólares americano. (Lembrem-se porém da desvalorização brasileira e não será exagero dizer que logo, logo, serão precisos mais de 2 “argentinos” para comprar uma unidade americana). Idem para o novo mínimo, o adicional de aposentadoria e o salário dos um milhão de desempregados. Todos vão receber na nova moeda e, quando forem às compras, verificarão que estão de posse de um “argentino” desvalorizado. O argentino e a argentina perceberão enfim que ficaram mais pobres em “argentinos”. Continuarão ricos ou ricas em pesos/dólares, mas não terão mais acesso às moedas boas. Só à podre, ou ao podre. Dir-se-á: mas essa é a realidade, é artificial ser rico numa moeda, o dólar/peso, que não se tem o suficiente. É verdade. Mas não é isso que o presidente Rodriguez Saá está dizendo. Está dizendo que ninguém vai ficar mais pobre e que, ao contrário, todos vão ganhar mais. Também é verdade. Só que ganharão mais em “argentinos” nominais e menos, muito menos, em moeda real. Sendo que o real aqui pode significar moeda efetiva, descontada a inflação e a desvalorização, como a moeda brasileira. Caso concreto: há aposentados argentinos que moram boa parte do ano em praias de Santa Catarina. Recebem aposentadorias em torno de 2.500 dólares, quantia que vinha dando em torno de 5 mil reais, mais do que suficiente para uma vida pacata à beira mar. Ou, pelo menos, tem sido mais confortável morar em Santa Catarina com 5 mil reais do que em Buenos Aires com 2.500 pesos/dólares. Como não poderão receber mais dólares, esse conforto também acabou. De novo: era artificial, tudo bem, mas vai dizer isso à pessoa que sofrerá a perda. Ou seja, o que o presidente Rodriguez Saá fará ou dirá quando os argentinos e argentinas de verdade perceberem quanto vale um “argentino”de papel? Publicado em O Estado de S.Paulo, 31/12/2001

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