POR QUÊ O BC PRECISA SER INDEPENDENTE

. Roteiros Cena 1, em um país qualquer: a diretoria do Banco Central decide aumentar os juros. Com a reunião ainda nos finalmente, o presidente da instituição liga para o presidente da República ou para o primeiro-ministro. Informa, com tom preocupado e já se desculpando: – Chefe, não tem jeito, vamos ter de aumentar o juro. – Outra vez! O país já não está crescendo, desse jeito vamos cair na recessão. – Mas, chefe, não é recessão. Apenas vamos crescer pouco, e a alternativa é a inflação,muito pior. -Pior para vocês, monetaristas, que só vêem números. Para nós, políticos, que vemos pessoas, povo, o pior é a recessão. Olha, faz o seguinte: volta lá e vê se convence o pessoal a reduzir os juros. – Já tentei, os diretores não vão topar. – Então, não tem jeito, está todo mundo demitido, inclusive você. Cena 2. Mesma situação, outro tipo de presidente ou primeiro ministro. Informado da decisão para a alta de juros, explode com o presidente do BC: – Vocês estão loucos? O que querem? Que a gente perca as eleições? – Mas, chefe, a inflação está subindo, e a gente perde a eleição por causa dela. – E quando essa inflação aí vai estar explodindo? – Bom, passa de 20% em um ano mais ou menos. – Ótimo, aí já passou a eleição. Manda bala, reduz os juros, deixa todo mundo contente até as eleições, depois temos mais quatro anos aqui . . . – Mas os diretores do BC são profissionais, eles não vão aceitar essa ingerência. – Ingerência é a …. Quem manda aqui? Está todo mundo na rua. Cena 3. A reunião da diretoria do BC está quase no fim, a decisão pelo aumento de juros está tomada, o presidente da instituição deixa a sala para ir ao banheiro privativo, ali onde tem um telefone especial, à prova de grampos. Ele mesmo disca para o telefone vermelho do chefe, que atende na hora. Fala com voz baixa, tapando o fone: – Olha, chefia, a decisão está tomada. Os juros sobem. – É? Quanto? – Cinco pontos, uma cacetada. – Quer dizer que os títulos pré-fixados vão dar uma grana … – Não, chefe, o contrário, os pré estão embutindo juro estável. Nós vamos surpreender o mercado. Tem que vender pré e comprar pós. – Seguro? Olha que a outra vez . . . – Não senhor, eu já expliquei isso, o cara lá da operação é que se confundiu. – Tá bom, tá bom, deixa eu anotar: vende pré e compra pós. Títulos, né? Não ações. – Claro, com a alta dos juros a bolsa vai cair. – Ei! então tem que vender ações. – Claro. – Claro, é? Mas você ia esquecendo. É sempre assim, eu tenho que lembrar de tudo… E o dólar? – Vai subir, tem de comprar. – Então tá bom, vai lá e enrola por umas duas horas. Dali mesmo o chefe liga para seu PC (Personal Controller): – Olha aqui, vê se desta vez não faz besteira. Você vende … Caricaturas à parte, não é difícil imaginar atores para a Cena 1. Trata-se de um chefe de governo sério, genuinamente preocupado com a situação do povo e desconfiadíssimo com aqueles que chama de tecnocratas. Itamar Franco não ficaria mal nessa cena. Juscelino Kubitschek também não, à parte a fala final, a ordem de demissão no ato. JK provavelmente chamaria seu chefe de gabinete e passaria a bola: “Vamos precisar demitir o pessoal do BC. Você pode cuidar disso?”. Para a Cena 2, um chefe de governo populista, o candidato mais à mão é, claro, Hugo Chavez, da Venezuela. Mas aqui entre nós, talvez um Paulo Maluf coubesse no papel. Para a Cena 3, certamente a mais caricata, o leitor e a leitora podem procurar atores. Mas eis aqui duas cenas reais. Uma passou-se no governo FHC. Um importante assessor do ministro Pedro Malan está em seu gabinete, em Brasília, numa tarde de um dia de crise. A televisão está ligada na Globo. Logo aparece o que o assessor esperava. Uma repórter dá plantão diante do prédio do BC: o Comitê de Política Monetária, Copom, acaba de elevar taxa de juros …. O assessor pensa um pouco e por via das dúvidas resolve falar com o ministro. Não, Malan não havia sido previamente informado. De sua vez, o ministro liga para o presidente do BC, Gustavo Franco na época. Pergunta se ele já havia falado com o então presidente FHC. Não, ainda não. Pois é melhor explicar logo, diz o ministro. Termina tudo com uma reunião no Palácio do Alvorada à noite, do presidente com a equipe econômica, para dar uma geral na crise. A outra cena é mais recente. Perguntado sobre a reunião do Copom que estava em andamento, o atual ministro da Fazenda, Antonio Palocci, responde: Copom eu não comento antes, nem durante, nem depois. Tudo isso, histórias inventadas e de verdade, para mostrar por que praticamente todos os países democráticos modernos, desenvolvidos e não desenvolvidos, adotam a autonomia (e/ou independência) do Banco Central. Claro que pode calhar de se eleger um chefe de governo honesto, sinceramente voltado para o bem estar de seu povo, não populista, não enfeitiçado pela popularidade fácil e que ao mesmo tempo seja um expert em economia política. Mas, convenhamos, é difícil. Mesmo os melhores políticos, em qualquer país, sempre sofrerão a tentação de escolher a saída de maior apelo popular, ainda que não necessariamente a mais correta do ponto de vista de política econômica. Por isso, ao longo do tempo, esses melhores políticos firmaram a convicção e colocaram na lei, para bloquear a tentação: a estabilidade da moeda é um valor universal, ou seja, vale para todos, para sempre. Consequência prática, também na lei: o BC deve ter autonomia (e/ou independência) para zelar pela estabilidade da moeda, para o que utiliza, basicamente, a taxa de juros. Vai daí que os diretores do BC devem ter mandatos fixos, não coincidentes com o do chefe de governo. E só podem ser demitidos se errarem a meta da inflação sem motivo razoável. Como FHC e Malan, Lula e Palocci têm respeitado a autonomia de fato do BC brasileiro. Mas seria melhor colocar na lei. Daria mais confiança no presente e, sobretudo, para o futuro. Sabe como é, nem sempre o povo acerta na eleição. O governo Lula prometeu a lei para a autonomia do BC, mas na semana passada saiu uma contradição. O presidente disse que não está gostando nem um pouco da atual autonomia das agências reguladoras (dos setores de energia, petróleo e comunicações). Reclamou que fica sabendo dos aumentos de tarifas pelos jornais. Mas é assim mesmo que deve ser. As agências são como o BC, devem ter autonomia para administrar e regular o setor. Se não, acontece o que já aconteceu no Brasil, na época em que tudo era estatal. O governo impunha tarifas baixas e com isso quebrou todas as empresas do setor elétrico, deixando um buraco perto dos US$ 30 bilhões. O telefone oficial era barato, mas não tinha. No câmbio negro, tinha, por mil vezes mais caro. Claro que a política de cada setor, assim como as metas de inflação, devem ser fixadas pelo governo eleito. Mas a partir daí, tem de ser tudo independente, com o presidente sabendo, sim, pela imprensa, para não ter a tentação ou a possibilidade de fazer algum papel das cenas 1, 2 ou 3. Publicado em O Estado de S.Paulo, 24/02/2003

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